quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Nem tudo é mau

A fim de tentar eliminar da minha memória a amarga experiência gastronómica de Natal (a famosa salada de batata acompanhada de uma salsicha de tamanho anormal mergulhada em mostarda), decidi ir até ao cinema e ver o mais recente filme do Miguel Gomes, Tabu.
Tendo o filme sido apresentado em pleno feriado desta gente entre a qual vivo, a rondar a hora do jantar e num cinema alternativo perto de um campus universitário completamente rogado ao abandono por estudantes em férias, julgava eu poder encontrar o conforto da solidão da audiência de um bom filme português.
Não poderia estar mais enganado.
De supetão a sala encheu-se.
Umas cinquenta pessoas resolveram partilhar comigo esta traumática experiência. E eu que só queria um pouco de paz e silêncio lusitano para poder lamentar a falta do bacalhau, das couves e da farinheira. Até dos sonhos tive eu saudades...
Se soubessem eles que as minhas mais amadas ilusões são de coscorões feitas...
Pensei então que a comunidade portuguesa se tinha unido e, num claro manifesto contra os cortes orçamentais contra o cinema, tinha aqui dado uma verdadeira lição de acordo com os ditos do nosso presidente de que os emigrantes reforçam o prestígio nacional. Mas não podia eu estar mais enganado. Contando por alto o número de portugueses na sala, eis que consegui chegar à considerável soma de 3. Eu e o casal que estava na fila atrás. Todos os restantes tinham aqueles aspecto deslavado e branquela germânico tão característico destas chuvosas paisagens .
Querendo fugir desta tenebrosa realidade, eis-me num restaurante afegão fingindo ser apenas um cidadão do mundo que tem saudades do fabuloso palavreado lusitano perpetuado pelo Alves e restante trupe. Na mesa do lado um casal homossexual optou por algo mais carnívoro que eu e zás, vai de falar do filme e das implicações e traumas da guerra colonial na actual sociedade portuguesa.
Fugi então de novo rumo a uma casa de si tão pequena que nem máquina de lavar roupa tenho.
Problema?
Não.
O prédio disponibiliza numa cave digna dos anos da guerra uma sala onde há uma máquina de lavar comum onde, por euro e meio, se pode lavar a roupa. E secar? Nada de cidades de roupas estendidas nas varandas garantido coloridos onde por vezes pontuam cuecas gigantes e soutiens escabrosos que alimentam a imaginação e mais profundos desejos e fantasias dos transeuntes. Uma outra sala no sótão, igualmente comum, onde se podem pendurar as roupas com aquela confiança de que ninguém nos vai roubar a camisola da zara.
E assim sendo encaro o céu cinzento como um convite a mais uma cerveja ou um daqueles tais vinhos quentes que tanto servem para matar a saudade da casa materna e embrião do mundo, Lisboa.

 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Interpretações

Claro está que tem este país diferenças evidentes aos olhos do normal e comum turista:
as ruas estão infinitamente mais limpas, tudo parece arranjadinho e em ordem, tornando-se virtualmente impossível uma pessoa perder-se, faz um frio desgraçado, a comum medida para uma cerveja é o meio litro, há um cheiro a salsichas no ar capaz de enojar o mais experiente trabalhador da Nobre.
Mas há também outras coisas que só o tempo e este conhecimento de experiência feito é capaz de nos transmitir:
Nas traseiras do prédio onde arrasto as minhas ossadas há um verdejante jardim onde pululam alegremente esquilos, coelhos, pardalitos, corvos e pegas. Confesso que já por diversas vezes perdi  o meu olhar sobre o jardim vendo estes pequenos selvagens a lutarem pelo dia a dia. Qual não é o meu espanto quando vejo um esquilo a atirar-se em voo picado sobre uma pega. Falhou. Uma pessoa a pensar em versões inovadoras de cabidela e ele vai de falhar. Passada uma boa mão cheia de minutos vejo um outro esquilo em novo voo assassino sobre um pardal, revelando um total desprezo pelas minhas ambições culinárias, embora ainda tenha calculado rapidamente quantos pardais seriam necessários para se fazer uma cabidela decente. Inquiri então algumas germânicas criaturas sobre o assunto, tendo-me todas respondido: Das ist ganz normal...
Será, então, porventura normal estar eu a correr tranquilamente a correr junto a um dos canais que habitam a cidade, quando do outro lado se ouve um sonoro "Stop!" (que em alemão soa a algo como Schhhhtòp de pê final sonoro) e se vê um adorável cão a correr de forma tresloucada. Sigo-o com o olhar, apercebendo-me que se dirigia para a ponte que o conduziria ao meu lado.
Temo.
 As pernas tremem-me.
 Há no meu olhar um instante de curiosidade de saber o porquê daquela corrida. Será que cheiro a salsichas ou a um qualquer AXE para cães?
Não. Um adorável coelhinho surgiu no virar da ponte a correr destemidamente pela sua vida. O cão passou e nem sequer me olhou.
Continuei o meu caminho na esperança de que não sejam os animais um reflexo dos humanos desta sociedade.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Depois de uma semana por Hamburgo resolvi então ver-me de outros ares só para fugir às ondas de frio que emanam deste tal canal Eilbek que fronteia a casa onde vivo.
 Fugi de forma decidida para terras onde as bruxas fizeram em Goethe eco e onde uma muralha naturalmente demoníaca domina a paisagem. Para rimar com esta paisagem tão díspar do lusitano Ribatejo fui então convidado para um Raclette. Que chique, pensei. Queijo derretido, vegetais grelhados sobre finas camadas de molhos rigorosamente seleccionados e, surpresa das surpresas, uma selecção de salsichas que nunca estes meus olhos tinham visto. Havia brancas, rosadas, de meio metro, minúsculas, outras que recitavam excertos completos da autobiografia do Gunter Grass num sem terminar de demonstrações da arte salsicheira capazes de fazer corar a mais anciã enroladora de farinheiras do Arneiro das Milhariças.
E para acompanhar tamanho repasto?
Uma lista interminável de cervejas das mais diversas regiões deste país. Como se tal não bastasse, ainda me perguntaram se, por acaso, não preferia cerveja checa. E eu que só pensava em vinho verde...
Claro está que deste tremendo repasto estou a excluir a importante e vital informação de que tudo isto teve início às 18h, hora que quase me provocou um espasmo. Mas isto não há nada que vença um ribatejano, ouvi dizer.
Pelo sim, pelo não, resolvi fugir novamente, desta feita para Dresden como quem procura espiar os traumas originados pela leitura do Slaughterhouse 5 do Kurt Vonnegut aqui há uns anos.
De rosetas cravadas na cara logo percebi a paixão dos filósofos alemães de fins do século XIX pelas barbas farfalhudas. Mais que paixão, é uma questão de sobrevivência aos frios nevísticos desta gente. Juro que pensei que ia deixando um dedo junto ao rio apenas para tirar uma fotografia ao rio semi-gelado. Isto já para não falar no facto de ter visto a cidade por entre as bolinhas de neve que me invadiram os óculos, o que sempre é uma experiência de relevante valor artístico.
Salvou-se a originalidade do museu do Erich Kästner (onde não nevava nem fazia frio), as intermináveis canecas de Gluhwein e o comboio que dali me levou para outras paragens.
Talvez em Agosto seja bonito...

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Primeiras hamburgas

O termómetro virtual do accuweather que me dá as boas vindas sempre que ligo o tablet anuncia de forma impassível e sarcástica -4º. Sinto um arrepio um pouco ainda maior quando vejo um pouco mais abaixo um outro valor de -8º precedido de um Real Feel.
Confessando-me desde já como um verdadeiro nabo da coisa, procedi a uma investigação apurada de horas e horas até descobrir que aquele Real Feel correspondia a uma cuidada avaliação de outros elementos como o vento, a humidade e o raio que os parta que condicionam a nossa percepção do tempo. Sorri e senti-me um pequeno conquistador dos Himalaias.
Numa atitude de puro masoquismo, resolvi ver quanto estava em Lisboa. 11º. Desliguei o tablet e fui fazer a quinta litrosa de chá do dia, pensando que tamanhas temperaturas não são, definitivamente, propícias à prática do futebol.
Contudo, este frio é mais que propício à prática da língua alemã. Aliás, já Nietszche o diria. E Schoppenhauer. E o Gunter Grass. E a Merkel. Se o Oliver Kahn soubesse falar como uma pessoa também o afirmaria sem titubear.
Por falar em Merkel e em resposta a todos os amigos que me pediram que lhe desse um "recadinho" lusitano, podem acreditar que assim que conseguir largar a minha dependência de bebidas quentes (chá, café e um tal de Gluhwein de encantos tamanhos) fá-lo-ei.
Lá para Maio ou Junho, portanto.
Um grande bem haja e sorte e Neno.

sábado, 8 de setembro de 2012

Sexo hosteleiro

Uma das perguntas que mais vezes me fazem sobre estas minhas actividades hosteleiras prende-se, claro está, sobre o sempre politicamente incorrecto e fascinante tema do sexo.
Seguindo-se à pergunta de "corre bem o negócio", sempre há olhares marotos dos mais diversos interlocutores que, olhando sempre em redor, me perguntam sobre estórias mais escabrosas esperando que lhes descreva de forma fiel as graduações dos gemidos produzidos por alemãs, coreanas e norte-americanas de origem hispânica aquando da prática sexual.
Embora talvez tenha conhecimento de uma ou outra coisa que poderão ser reveladas mediante um adequado pagamento, a verdade é que o que mais comumente que salta à cabeça é a figura bizarra de um amável troglodita irlandês de cabelo deslavado e dentes tortos que tendo ficado no sacrossanto quarto de 4 com mais dois paquidermes alemães que rivalizavam com o Bob Marley na coleção de especimens estranhos no couro cabeludo e seu consequente cheiro e uma simpática rapariga que nunca lhe deu grande resposta a todos os seus intentos socializantes, resolveu, na crítica deixada ao hostel escrever algo como: Não sei se a rapariga que dormiu no quarto se sentiu muito confortável por ter três homens a partilhar o mesmo espaço.
Embora tenha sentido vontade de responder algo jocoso envolvendo a igreja católica irlandesa, não o fiz por um questão de decoro ( e porque o hostelbookers mo proíbe sob ameaça de rescisão de contrato).
Mais recentemente recebi uma família norte-americana onde o generoso pater familias se recusou a ficar no hostel pois tinha medo da filha de 16 anos. Neste caso teriam que partilhar quarto com um casal canadiano. Tranquilizei-o dizendo que o casal não estaria particularmente interessado em aventuras estranhas envolvendo o Bryan Adams, a Céline Dion e outros ícones da cultura canadiana.
Mas de nada serviu, repetindo ad nauseum à frente da pobre miúda que tinha medo que alguém tentasse algo de indecoroso com ela. Ela, bastante corada e não tendo coragem de levantar os olhos do ipad onde procurava outro sítio para ficarem, ouvia tudo com o ar de que se apronta para esfaquear o pai. Ainda estive para advertir o pai que ele deveria temer mais pela filha que pelos outros hóspedes.
A verdade é que assim cresce em mim a esperança de um novo puritanismo que um dia regule e reja este mundo em que vivemos.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Do ronco espiritual

Um dos horrores de todas estas gentes que frequentam os hostels é o ronco.
Dormir no quarto com um roncador que possua uns pulmões de fazer inveja ao Joaquim Agostinho é cenário digno do mais pesadelístico filme de terror.
E foi digno de filme de terror a forma como ontem acordei julgando que um tubo da cozinha se tinha roto. Onde é que vou arranjar um canalizador às três da manhã, pensei, aflito. Saio do quarto qual bombeiro sapador quando eis que me deparo com um francês a dormir no sofá da sala ao mesmo tempo que produzia um ronco tenebroso e delicadezas musicais de fazer inveja ao Stockhausen.
Também franceses eram os dois moços que no outro dia encontrei a dormir em torno dos matraquilhos. Logo me senti culpado de os ter esmagado sem dó nem piedade no dia anterior, obrigando-os a prestar vassalagem nocturna para se redimirem dos seus pecados. Depois de devidamente identificados através de um sofisticado sistema de fotografia, lá acordaram, queixando-se dos roncos de um colega de quarto, que os levou a abandonar o quarto e tentar a sala. Sendo que na sala ainda se ouvia, resolveram ir para a entrada do hostel dormir no chão aconchegados pelo calor sensual das pernas dos matrecos.
Mas, seja como for, nunca ninguém baterá o famoso belga que se ouvia por todo o hostel e que fazia reverberar ao de leve as janelas do quarto onde dormia.
Mas isso já são outras calendas...

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ido definitivamente o senhor do Olá com as seus eternas e resplandecentes saudações a toda a comunidade hosteleira, regressou a senhora que com ele se viu de razões num post bem recente.
Voltou e ah, se voltou.
Vendo-a debruçada sobre o computador qual Mr Magoo a conduzir, pedi-lhe educadamente que fosse útil à sociedade e pusesse música para alegrar os espíritos daqueles que limpavam o hostel (eu, entenda-se).
E assim fez.
Led Zeppelin. Rolling Stones.Beatles. Tudo bem até ao momento em que resolveu pôr Marianne Faithfull.
Senti que o inferno estava calmamente a revelar-se.
De repente o hostel começou a reunir curiosos que saídos dos seus quartos se abeiravam do computador, armando-se em verdadeiros dj's profissionais do youtube, fazendo inveja a muito bar que para aí anda.
Mas esta inveja foi relativa. Depois de uma verdadeira britomania (até os Oasis soaram Deus meu) que quase me fizeram trautear, eis que se assoma um mocinho de Malta, com cara de ressaca de quem passou três dias num festival e uma noite no Bairro Alto e resolve pôr música com leve batida, também conhecida como música de gogonhanhas em alguns restritos meios desta nossa sociedade.
Estando eu já a pensar numa qualquer piada inofensiva sobre a música, eis que vejo a brava cinquentona chegar ao pé dele e perguntar com a característica fleuma britânica:  Can I take your shitty music off?
Perante o espanto assustado do mocilaime pôs Lou Reed para toda a vizinhança enquanto dançava e gritava que ainda se lembrava de como era ele charmoso há uns anos atrás quando ela era jovem.
E assim se impõe o respeito.
O meu muito obrigado.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Às vezes recebem-se por estas bandas abençoadas personagens capazes de lutar de forma digna por um lugar nos romances do Murakami.
Se no post anterior vos descrevi de forma séria e imparcial o homem do Olá, hoje falo-vos de uma senhora inglesa dos seus 50 anos que fez da digna jogatana de se embriagar nos mais escuros cantos do hostel a sua actividade principal nos dias que por aqui ficou.
E que acontece quando se juntam dois personagens?
Era de manhã cedo, o meu metabolismo tentava ainda assimilar a total beleza gustativa de um Lapsang Souchong quando oiço o homem do Olá a informar a britânica senhora que o chá faz mal porque tem muitos químicos derivados do tipo de plantação praticado por países subdesenvolvidos como o Quénia ou o Paquistão.
(Que pena que a Alemanha não plante chá...)
Antes ainda de conseguir fazer uma ressalva para a qualidade do chá da Gorreana, defendendo-o como a mais pura flor do Lácio dos chás, já a senhora lhe tinha respondido categoricamente que se calasse e não dissesse disparates.
Mas olhe que tenho razão...
Mas a teína é boa para a saúde
Mas os químicos que são utilizados
Mas isso também na água
Não é a mesma coisa
Ai não?

Resolvo abandonar a cozinha pois manda-me o senso comum não me pôr entre alemães e ingleses sob risco de ainda entrar para a família real britânica e eu cá não gosto de promiscuidades com essa gente.
É então que a sala é invadida por ruídos ainda mais fortes. Resolvo entrar na cozinha tal qual Estados Unidos no Iraque para acabar com aquela macacada.

Mas olhe que a nicotina faz bem.
Muahahahahaha. Cigarros?
Claro! O problema são os químicos que lhes põem.
Os cigarros matam! Vem nos maços.
Isso é porque não fumas.

E neste momento resolvi abandonar de vez as instalações do hostel esperando que sunitas e xiitas decidissem de forma bíblica se Maomé marcaria o penálti na final do campeonato do mundo com o pé direito ou com o esquerdo .
Quando regressei já nenhum dos dois estava e a paz reinava como nunca. E aparentemente criei uma solução-metáfora para a política externa norte-americana, enquanto encho os pulmões com o ar de cimo da colina e beberico um pouco mais de chá...

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O homem do Olá

Se durante muitos anos Lisboa teve o Senhor do Adeus, é com algum orgulho que anuncio aos meus queridos concidadãos que agora temos o homem do Olá.
De origem alemã, Stefan apareceu aqui pelo hostel há coisa de um mês sem reserva. Como eu não estava, resolveu sentar-se na sala, ligar-se ao meu wifi e fazer uma reserva por dois dias. Quando cheguei e me deparei com um primeiro "olá" pronunciado numa mistura perfeita entre o alemão e o espanhol, pensei cá para comigo que isto prometia.
Passados os dois dias pediu-me para ficar mais um, pois estava à espera de um mail de uma amiga que vivia em Coimbra. E assim foi no dia seguinte. E no outro. E a seguir. E assim se passou já um mês.
Detentor de um riso histérico capaz de acordar o mais profundo dos mortos do Alto de São João, o Stefan é capaz de dizer Olá sempre que vê alguém, mesmo que seja a 5ª vez que o vê no espaço de 12 minutos, tornando-o num rival à maneira do Senhor do Adeus.
Além do mais o Holaaaaaa que produz é estridente e acompanhado de um sorriso de olhar vesgo de um antropólogo que se sente feliz perante a descoberta de uma nova tribo canibal da Papua Nova-Guiné. 
Como qualquer hóspede que fica mais do que o tempo normal, o homem do Olá já está a adquirir hábitos e manhas capazes de me tirar do sério.
Entre o lavar a sua própria roupa na casa de banho com o gel que disponibilizo para as mãos e que em seguida fermenta no quarto produzindo um cheiro nojento (nojento, ai que belo eufemismo), passando pelo facto de se levantar 3 minutos antes do fim do pequeno-almoço ou a forma douta como se apropria de grande parte dos hóspedes que vão surgindo por aqui e lhes vai explicando coisas sobre esta nossa Lisboa embora quase nunca saia do hostel.
Pois hoje de manhã resolvi antecipar-me e tirar o pequeno-almoço quatro minutos antes da hora.
Um minuto depois ouço os passos apressados do alemão a correr corredor abaixo apenas para descobrir que já não havia pequeno-almoço.
Chamem-me mesquinho, mas hoje o Olá perdeu o tom estridente e os olhos parte do brilho de antropólogo como quem acaba de descobrir que só é giro estar numa tribo de canibais até ao momento em que eles nos comem um pé ao lanche.

sábado, 28 de abril de 2012

Perdidos e achados

De todos os momentos que marcam a rotina aqui do albergue há um que aprecio particularmente: quando toda a gente abandona a casa rumo à cidade e um silêncio sepulcral apenas quebrado pelo queda das bátegas de humidade no fundo do poço se faz imperar.
É claro que também se tem que contar com a música do senhor da cave que faz tremer o chão e os carros que são apitados violentamente, revelando verdadeiro desespero perante o olhar curioso da brigada dos bêbedos do Alves que comenta de forma serena  se o carro pertencerá a alguém a almoçar no referido estabelecimento.
Tirando isto, impera um silêncio sepulcral.
Preparo um chá. Preparo o narguilé. Preparo um livro. Preparo o cadeirão.
Sento-me e desfruto.
Se perfeição houvesse, esta seria a sua imagem de marca.
Pois estava eu num alto patamar da perfeição a passar os meus olhos sobre o mais recente trabalho do Murakami e a experimentar um delicioso Alfakher turco sem tabaco quando alguém toca à porta.
Quem raios se atreve a violar este meu sagrado momento?, pensei eu.
Abro a porta. Um jovem com cabelo a imitar a vida do Cristo e um olho para cada lado.
Oi, tenho uma reserva para este hostal mesmo. Johnies Place. É.
Olho de soslaio como quem já pressente um cheirinho a esturro. Ideia nenhuma de receber pessoas naquele dia. Mesmo assim, deixei-me levar pelo mapa de marcações. Nada. Verifiquei nos sites de reservas. Nada.
Lamento, disse. Não tenho nenhuma reserva com o teu nome.
Ah, mas se tenho até papel.
Quando mo mostrou descobri que tinha feito a reserva para o dia correcto. O mês é que não.
Evitei fazer piadas como: Ah, foi o mês ao lado, a fim de evitar comparações com a vesguice do rapaz.
Depois de ter ido conhecer esta bela e única Lisboa onde nunca se sabe quando é que um prédio nos pode cair em cima, eis que regressa com ar meio estupefacto.
Você acredita que perdi a minha carteira?
Acredito, sim. Que tinhas lá dentro?
Ah, tudo. Dinheiro, documento, identificação, contactos, tudo.
Depois de lhe ter indicado a localização precisa e exacta da polícia turística, lá o despachei com um alemão chato como a porra.
Quando regressou tinha um sorriso estampado na cara dizendo que no preciso momento em que estava a apresentar queixa lhe apareceu um polícia com a carteira.  Oba, qui bommm. Nossa!
De sorriso estampado, arrumou as suas coisas e partiu rumo a Aveiro.
Ou isso achava eu.
Passado uma hora, toca de novo à porta.
Oi, esqueci minha pasta com os bilhetes... Sorte que só vou ficar 10 dias na Europa e a cabeça 'tar grudada no corpo.
Se alguém encontrar um corpo de um jovem brasileiro perdido numa qualquer cidade dessa Europa, por favor enviem de volta ao seu país a pagar no destino.

quinta-feira, 8 de março de 2012

E assim se consegue

Pois há coisas estranhas a acontecerem a estas pessoas que se dedicam ao ofício da narração de estórias.
Uma dessas foi mesmo o olhar que me foi devolvido pelo Hans quando o questionei na internacional linguagem sobre o quão sensato seria entrar dentro de uma viatura conduzida por um iraniano que nunca antes tinha visto e que, na minha visão ocidental do mundo, bem que me podia retalhar e vender à embaixada portuguesa para de mim se fazerem saborosas farinheiras.
Pois entrámos. Depois de uma condução que seria capaz de deixar o mais ousado dos concorrentes das wacky races completamente esgotado de ideias para vencer o prémio final, fomos largados na Rua Ferdosi, onde se troca dinheiro na rua tal e qual se faz com os cromos da panini à entrada da estação do Rossio.
Ainda a tremer e a temer pela minha vida, fomos convidados a sair da viatura e a seguir o tal de gordinflim do post anterior que nos introduziu numa loja onde homens gritavam com maços de notas nas mãos.
De certa maneira, senti que estava a entrar num género de mercado de acções paralelo, bem no centro de uma vida intensa que se regula por leis que em nenhum lado estão escritas.
Tendo como referência o valor de câmbio 1€ - 18000 rials que tinha visto anunciado num banco, senti que não poderia ser enganado e que aquele seria um lugar sério. Às vezes temos que repetir certas coisas para nós mesmos a fim de conseguirmos acreditar nelas.
Foi então que 2 jovens se aproximaram de mim e do Hans e nos perguntaram o que queríamos num inglês de fazer inveja ao David Beckham. Ao ser confrontado com o valor que queríamos trocar, chamou um outro amigo e convidaram-nos a sair da loja, propuseram um valor de câmbio de 1€-27000 rials.
Assenti com a cabeça, tendo ainda em mente o valor anunciado no banco e logo em seguida nos encaminhamos para um multibanco em frente da embaixada alemã, onde, entre polícias armados até aos dentes e câmaras de vigilância procedemos à troca do dinheiro, despedindo-nos entre abraços e desejos de sorte na vida.
Algo me começou a dizer que havia ali uma outra gente e um outro mundo por detrás de oficialismos e visões ocidentais.

domingo, 4 de março de 2012

De como se troca dinheiro

Os incautos iranianos acordaram-me depois de apenas ter dormido 4 horas. Desconheciam eles o facto de que não havia fúria divina que se comparasse com o meu mau humor matinal.
Não sei como, saí da cama e prontamente ignorei o pedido para me despachar.
Pedi um banho. Responderam que não dava tempo. Desapareci dentro da casa de banho.
Sei que ao incauto leitor este é um acontecimento normal e banal e que até passa despercebido, mas posso-vos garantir que mais desaparecimentos ocorrerão em posts futuros.
Foram-me buscar à casa de banho com kind requests para me despachar, o que desde logo traduzi nesta minha linguagem ocidental como: é bom que te ponhas a fresco antes que te façamos a ti o mesmo que fazemos às rameiras que cometem adultério.
Obedeci.
Fui apresentado a um dinamarquês.
Fui apresentado à responsável daquilo tudo.
Fui apresentado a um tipo qualquer que era não sei quê.
Abracei com marcado sorriso o simpático motorista que no dia anterior me tinha resgatado do aeroporto.
Fui levado ao bazaar, mergulhado no mais profundo e belo caos onde fui confrontado com dura realidade: Não tenho dinheiro e sempre que a tradução surgia com preços em Euros, todo eu duvidava de serem aqueles os preços reais.
Urgia então trocar dinheiro.
A seguir a um faustoso almoço, provi-me da companhia do dinamarquês e partimos rumo à rua Ferdosi citando os seus poemas numa clara competição intelectual apenas comparável com um Portugal Dinamarca de há uns anos quando o Figo marcou um esplendoroso golo ao Schmeichel.
E tão embrenhados estávamos nestas lides que nos perdemos.
Entrámos num Kebab e perguntámos onde podíamos trocar dinheiro.
O tipo que lá estava a trabalhar sai da loja a correr e eu pensei: já está! Vão chamar a Santa Brigada anti-estrangeiros, esquartejam-nos em 5 minutos e em breve rivalizaremos com o kebab de borrego. Mas não. Passado um bocado apareceu-nos um bonacheirão que logo franziu a cara quando lhe dissemos quanto dinheiro queríamos trocar. Fez-nos gestos para que esperássemos ali mesmo. Aha! Agora é que ele foi chamar a tal de brigada, pensei.
Não. Foi chamar um amigo que nos convidou a entrar no seu carro e...

(To be continued)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Arrivare

Se tive medo? Não.
Mas agradeci ter chegado são e salvo a territórios mais democráticos.
De forma curta e grossa poderia resumir assim a minha experiência iraniana.
Mas há muito mais para além disso...

Cheguei de madrugada a uma Teerão que se apresentou de trajes oficiais de neve e com um piscar de olho à primeira de muitas imagens de um Khomeini que nunca sorri pese embora tivesse tido quatro mulheres ao mesmo tempo. Talvez por isso mesmo sempre esteja tão moribundo. Mais fácil governar autoritariamente um país de 70 milhões de pessoas que aguentar 4 mulheres dentro do mesmo espaço.
Sinto pena pelo moço, é o que sinto.
Mas logo me deixei de coisas quando fui confrontado com a forma como conduziam. Não poderia eu imaginar mais bruta experiência. Se em Istambul tinha tido medo, aqui agradeci a divina protecção de Alá(1) em todas as bandeiras que vi entre o aeroporto e o meu pouso.
Mas nada disto se viria a comparar com a condução a que fui submetido no dia seguinte.
Mas isso fica para outro post de inspiração iraniana.



1- Aquele simpático símbolo no centro da bandeira do Irão representa nada mais nada menos do que Allah u Akbar, ou Deus é Grande como se diria por estas lusitanas terras.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Made in Asia

Quando assumi esta minha faceta estalajadeira, não pude deixar de reparar o avançado estado de racistismo em que se encontrava o anterior dono, classificando quase todos os países europeus pelos seus defeitos, capazes de colocar a discografia do Manolo Escobar entre as obras-primas da diversidade cultural dos nossos dias.
Embora já tenha comprovado que o maior defeito comum aos alemães é o de falarem alemão e o dos espanhóis, espanhol e por aí adiante, há, contudo, todo um continente que me tem vindo a levantar algumas questões a nível das suas atitudes, comportamentos e posturas assumidas por estas bandas: Ásia.
Ao início confesso que sentia sempre aquele fascínio do pobre tuga perante algo de exótico e novo, mas o tempo encarregou-se de pôr na minha cara um leve laivo de preocupação sempre que vejo surgir nas reservas um Min, um Han ou um Kim.
De forma a tornar tudo isto num exercício por deveras mais interessante, proponho que associem as nacionalidades dadas às situações descritas. Ora bem, os candidatos são
a) dois japoneses
b) vietnamitas
c) indiano
d) sul-coreana
e) duas japonesas


Situação 1:
Recebo chamada histérica sobre como a porta do hostel não abre. Tento explicar possibilidades, ao que sempre me respondem: "Come, come, come, come quick". Interrompi o meu justo descanso, peguei no carro e conduzi como louco rumo à Graça como se houvesse novo terramoto. Quando cheguei, saí do carro à la David Hasselholf e exemplifiquei que a porta se abria rodando a chave para a direita, ao que me responderam com um "Nandeeeee" em coro, fazendo inveja ao coro de Santo Amaro de Oeiras.

Situação 2:
Estando no cafofo, começa-me a cheirar a queimado. Descubro fumo na cozinha e uma caçarola com um género de arroz esturricado no fundo. Pergunto na sala se é de alguém. Há um não generalizado. Saio para o poço para perguntar se seria de algum incauto fumador. Nop. Quando regresso à cozinha, deparo com a caçarola em cima de uma placa de madeira a deixar uma catita marca queimada que ainda hoje lá está como testemunha do momento. Saio novamente para a sala e pergunto outra vez. Ninguém responde e começo a perguntar individualmente. É então que uma criatura me diz que tinha sido ela enquanto continuava a teclar desenfreadamente no facebook, encolhendo os ombros quando lhe disse que podia ter pegado fogo à cozinha. Confesso que me aguentei para não lhe dar com a caçarola na cabeça e noutras partes sensíveis.

Situação 3:
Estando na cozinha, aviso umas criaturas que o forno precisa de fósforos para ser acendido. Sorriem e acenam. Abrem o forno, põem uma pizza lá dentro e ligam o gás. Digo-lhes que já o farei. Voltam a sorrir e deixam o gás ligado, continuando de volta do forno. Aproximo-me na eminência de explosão e eis que tenho o meu acesso barricado pois eles tinham chegado primeiro ao fogão, dizem. Agarro num deles, apago o gás, deixo a cozinha respirar e explico como se faz. Sorriem e acenam.

Situação 4:
Duas alemãs chegam enojadas ao pé de mim a dizerem que não há condições para tomar banho. Chego à casa de banho e tenho dúvidas que o titanic tenha metido tanta água como a que ali vi. Peço desculpa e trato de recolher a água. No dia seguinte, encontro-me a fiscalizar a casa de banho, qual membro da ASAE. Descubro o culpado. Confronto-o e ele abana a cabeça em sinal de reconhecimento de culpa. Respiro fundo com esperança num futuro imediato mais razoável.
No dia seguinte a casa de banho tinha mais água que a nossa economia.

Situação 5:
Chegam. Pergunto se precisam de dicas sobre a cidade. "No". Ok. Vão bardamerda que eu vou ler contos sobre a morte.
No dia seguinte perguntam-me coisas sobre a cidade. Faço um sorriso ácido e respondo de forma cortês. Depois de uns bons 15 minutos a explicar mais do que promete a força humana, afasto-me deles com o sentimento de missão bem cumprida. Contudo, eles não partem rumo à cidade, mas sim rumo ao pc para confirmar no wikipedia tudo aquilo que lhes tinha acabado de dizer. Tortura seria pouco.

Quem acertar correctamente a que nacionalidade corresponde cada uma destas situações ganhará uma garrafa de saké. Ou bagaço.

domingo, 15 de janeiro de 2012

De los rincones de la lectura

Al ver un espetáculo de Nicolás Buenaventura, el libro de magia se abrió aún más cuando, al final, abrió las escena a cuestiones del público. Para contestar a una hizo referencia a Oliver Sacks y a su libro El hombre que confundió a su mujer con un sombrero. Desde luego me acordé de cuando lo busqué como loco para la biblioteca donde trabajé a pedido de un lector. No lo descubrí. El éxito que había tenido en 1990 había agotado por completo todas suas ediciones y la biblioteca no tenía permiso para comprarlo en librerías de segunda mano. Terminé pedindolo a mi mejor amigo para que yo lo pudiera satisfacer el deseo del utilizador. Cuando le pregunté de que iba el libro me contestó como siempre: Porque no lo lees? Te lo recomiendo.
La verdad es que nunca lo hizo y dejé la curiosidad en un rincón más o menos oscuro de mi memória hasta que lo escuché hablando de él. Lo busqué de nuevo, ahora ya en librerías de segunda mano, pero imposible, me dijeron. Mi mejor amigo está en Estados Unidos por lo que la oscuridad volvió, poco a poco sobre el libro, hasta que, el otro día, pasaba por mercadillo de pulga, que está justo al lado de mi casa y vi a un tío poniendolo en el "escaparate". Aunque estuviera medio dormido, no lo dejé escapar y le pregunté el precio. Cuando lo miró con el típico aire de desprecio que por ahí suelen tener las personas que venden libros, de su boca salió: 1€ ó así...
Más barato que un bono de bus en Lisboa. Lo compré.
Pues ayer estaba medio liado con una traducción que me pasaron sobre agencias funerárias y resolvi empezar a leerlo a ver si conseguía "respirar" un poco. Solo terminé cuando leí su última y maravillosa frase "El profesor debe amar el deficiente que és bello y honesto vivir en un mondo más simples y puro".
A veces tenemos que agradecer a los que siguen iluminando estes rincones más o menos oscuros de nuestras mentes.