terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Fomeca da boa

"I'm beginning to see that our appetite for books is the same as our appetite for food, that our brain tells us when we need the literary equivalent of salads, or chocolate, or meat and potatoes." - Nick Hornby

Agora que nos estamos a aproximar o fim do ano, começam a surgir as listas. Os melhores livros, os melhores álbuns, os melhores filmes, as melhores gafes, os melhores ou mais marcantes momentos, etc, etc... Cansa. Cansa muito.
Mas por muito que sempre questione os senhores que elaboram as listas e a sua autoridade moral, confesso-me um viciado incontrolável e, quando ninguém está a ver, lá vou eu dar uma espreitadela e reconhecer a minha ignorância ao aperceber-me que mais um ano passou e não li/ouvi/vi nem metade do que de bom foi feito. Na realidade os meus números costumam cifrar-se nos 32%, mas isso já são outras estórias que poderão revelar em mim um geek em potência.
Talvez, arranjo eu como desculpa, eu não seja assim tão mainstream. Mas muitas das listas que consulto também não o são. Ou pelo menos pretendem não o ser. Nos tempos em que lia a Ípsilon como quem lê a Bíblia em fascículos semanais os meus números eram melhores. A paixão da Ípsilon com o B Fachada deitou tudo a perder e acabei por me dedicar a outras fontes renegando o suplemento que me acompanhava o almoço de todas as sextas.
Estando por terras germânicas e a beber de fontes variadas nos mais diversos idiomas numa esquizofrenia sem igual, a questão das listas começa-se a tornar incómoda. Ou leio o que me anunciam as listas ou o que me recomendam as inúmeras pessoas interessantes com quem me cruzo e que me apresentam novos mundos. Ou oiço os álbuns do ano em Portugal ou o que se está a fazer na Alemanha. Ou em França (confesso que ainda um dia hei-de perceber que raio de paixão é esta que os alemães têm com a cultura francófona).
Mas esta nem é a questão principal.
O que todas estas coisas têm em comum é o facto de fazerem crescer em mim uma fome tal que só poderá ser resolvida num período de isolamento autista com o meu disco externo cheio de música e uma cabana de 27 metros quadrados com as paredes repletas de livros e 12 moleskines para ir tomando notas aleatórias sem qualquer ligação entre si. Peço três meses. Duas paletes com uma selecção cuidada de vinhos do Douro e Alentejo. Uma linha de entrega directa de tabaco para o narguilé feito de forma rigorosa pelo senhor que tem a loja egípcia em Wandsbeker Chaussee.
Peço pouco que sou pessoa simples, mas com uma fome desgraçada (no seguimento da citação com que se inicia este post)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Ubahn

Neste sonho que me invadiu estava no metro. A caminho de casa. À minha volta havia as caras cinzentas do costume que reagiam com a indiferenca de sempre à irritante voz que sempre vai anunciando a próxima estacao sem nunca errar nem mudar de tom. Maravilhas da vida moderna, penso. Num momento lembro-me do senhor da estacao de comboios de Santarém que gritava de forma imperceptível a entrada da próxima composicao numa das duas linhas disponíveis.
Se há aculturacao que os alemaes conseguem implantar de forma categórica nos emigrantes é a  do cinzentismo nos transportes públicos. De facto é um bocado indiferente de onde uma pessoa vem, que o nao sorriso e o olhar mortico para um telemóvel consegue ser exactamente o mesmo. Assim se esbatem as diferencas culturais criando uma unidade e identidade nacional, penso.
"Fahrkarte, bitte". De um pulo procuro o bilhete e pergunto ao revisor se isto já chegou ao ponto de ter que se pagar bilhete para se sonhar.
Na altura em que as nossas vozes já se levantavam mais do que o aconselhado pela OMS acordo com o coracao a bater e a repetir para mim incessantemente que tirei um bilhete diário e que posso sonhar noite fora sem ser interrompido.
Ao sair da carruagem chegando a Horner Rennbahn depois de um serao de contos deparo-me com um tipo a bater violentamente numa mulher da qual só vi cabelos e ocasionalmente as pernas. Na carruagem do lado onde tudo isto se ia passando, os cinzentoes iam focando os olhos no telemóvel e ninguém se dignou mexer como se fosse apenas normal o que ali se estava a passar.
Infelizmente esta última parte foi bem mais verdadeira que o sonho com o revisor e aparentemente ainda nao houve sonho que fosse capaz de afastar esta imagem tao real da minha cabeca.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Algo chateado

Perante uma plateia morta de tédio e desespero (como só os adolescentes o conseguem ser) e um grupo de professores orgulhosos o João de Melo foi ao Liceu. Não hoje. Não ontem. Nem mesmo anteontem. Se a memória não me falha terá sido há uns catorze anos.
Eu estava entre os adolescentes meio adormecidos que não tiveram hipótese senão a de irem para a sala de actos sem aviso prévio. Santarém estava imersa num daqueles dias de nevoeiro que costumam enrolar os scalabitas num género de apatia e nostalgia, sonhando com um futuro cheio de gloriosos passados.
Perfeito para ser lida uma apresentação do personagem que nos tinha concedido tão amável visita. Com um papel recém-impresso uma das orgulhosas professoras fez uma leitura à primeira vista de informações que quase pareciam saídas de uma enciclopédia estrangeira.  Posso jurar que a apresentação não durou mais que 2 minutos, mas que vi o estranho senhor de cabelo grisalho a revirar os olhos pelo menos 15 vezes.
No fim de uma conversa sobre guerra colonial, colégios de padres, Lisboa, os Açores e a outra senhora, o senhor Jorge de Melo resolveu perguntar aos inchados professores se por acaso já tinham lido algum dos seus livros. A fim de esconder o embaraço da resposta (ou da falta dela) a professora do curso técnico de comunicação social tocou solicitamente nas costas de um dos selecionados para fazer perguntas. Aí surge a fatal pergunta que, com certeza, provoca calafrios e vontade de ir à casa de banho a todos os escritores: Porque é que começou a escrever?
Novo revirar de olhos.
Já com as órbitas de volta ao local esperado foi-nos explicado que antes de começar a escrever, foi leitor. Compulsivo, como um vício que não se consegue abandonar nunca e que só tende a piorar. Quando já não tinha mais tempo para ler, começou a escrever.
Isto marcou-me de forma profunda, até porque na altura escrevia mais do que lia como, de resto, acontece com muito bom adolescente.
Este momento singular marcou-me de tal forma que se operou em mim uma revolução interna. Comecei a ler mais,  introduzindo em mim a angústia de achar sempre que o tempo nunca me irá chegar para ler tudo o que quero ou devo até poder recomeçar a escrever e sonhar que isso será bom para outros. Mas sobre isto já o Gabriel Zaid no seu Livros de Mais fala de forma muito mais profissional e com números e tudo. Como é sabido nunca fui particularmente brilhante com essas coisas dos números constituindo sempre um mistério insondável o facto de ter dinheiro para pagar as contas ao fim do mês.
Quis a vida que fosse trabalhar numa biblioteca depois de um par de reviravoltas.
Perfeito, pensei.
O meu vício começou a ser alimentado de forma indiscriminada sem qualquer tipo de pudor. O prazer de ir às compras é e sempre será para mim indescritível e ecoará dentro de mim como momentos de pura euforia.
O quotidiano, contudo, encarregou-se de me ir tirando o peso das ilusões. As razões são as do costume e é sempre redutor lançar lugares comuns temendo mesmo excluir pessoas de valor e inspiradoras. Mas ouso dizer que a maioria das pessoas que conheci neste mundo das bibliotecas pouco ou nada lê. Indignam-se com os 60% que não leram um único livro no ano passado esquecendo-se que talvez façam parte desse mesmo número. Mas pior que isso é a forma como enchem o muro do facebook com citações e imagens sobre a beleza e benefícios da leitura como se de uma seita se tratasse. Seita essa que tanto cita Pessoa com um pôr de sol de fundo, Osho com uma gaivota (e os inconfundíveis óculos de sol) ou Chico Buarque com uma criança a ler pendurada numa árvore numa ilustracao digna dos livros da Anita. Ah, o Einstein também costuma aparecer nestas lides.
Nos comentários ao mesmo relatório fala-se inevitável da crise e do preço dos livros, mas, tanto quanto sei, ainda há bibliotecas em Portugal com horários de abertura generosos. 
Por estas terras frias paga-se para se ser sócio das bibliotecas públicas. Os atrasos nas entregas dos livros são igualmente alvo de pequenos lembretes pecuniários. O cartão da Zentralbibliothek faz referência a "cliente" e não a "sócio". Contudo, às 11 da manhã, hora em que a dita cuja da qual sou sócio abre, há, invariavelmente, uma fila de pessoas à espera para entrar num cenário de quase sonho para muitos.
Como que por acaso cruzei-me aqui no café com a responsável pelas compras de livros para a biblioteca. Perguntou-me o que achava eu da parte relativa à literatura portuguesa. Picarrucha, respondi na secreta esperança de que surgisse um investimento à escala da minha fome. Sabes, respondeu ela com aquela desarmante sinceridade alemã, não é que não haja portugueses em Hamburgo (quase tantos como em Grândola, bem sei) mas os números de requisições não justificam um aumento no número de volumes disponíveis (que polida que é esta gente, heim?).
Poderia tecer comentários sobre as diferenças e possíveis motivos.
Não o farei porque, de momento, sinto o mesmo que senti há catorze anos atrás quando o João de Melo se dignou a visitar o Liceu num invejável exercício de revirar de olhos. Na altura pus a minha scalabitanidade de parte e hoje vou deixando o orgulho pátrio fixar-se na produção vinícola e nas horas de exposição solar com que as nossas cidades são agraciadas ano após ano.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Apaixonado

Conheci o Mario no dia em que morreu.
Acontece-me amiúde. Eles morrem e eu lá estou, pronto a conhece-los.
Na altura estava apaixonado pelo Moacyr (ainda estou) mas já andava nos primeiros namoriscos com o Galeano, comecando a acreditar que beber mate confere uma capacidade literária capaz de inscrever qualquer um no Olimpo literário e nos códices do Harold Bloom.
Passados quase quatro anos, estou apaixonado pelo Mario. Pelo Moacyr. Pelo Galeano. Pelo Valter. Pelo Saramago. Pelo Lodge. Pela Sophia. Por todos os que ainda me fazem sorrir (maneira simpática de abreviar uma lista que sempre ficaria incompleta). Sou um pouco permissivo nestas coisas, embora só costume ir com um de cada vez.
Hoje jantei com o Mario da mesma maneira como quem janta com um bom amigo. Sendo que este amigo nunca falta alegando constipacoes ou obstipacoes. Pode até mesmo estar morto que nunca falta. Às vezes pode ser difícil de encontrar, mas uma vez encontrado, nao falta.
E da mesma maneira que comigo jantam, sempre os consigo levar para cama sabendo que quando acordar ainda lá estarao ao meu lado.
Que bonito é ainda estar apaixonado!




 E acreditar.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Lisboa vista pelos espanhóis



“Es como el testigo silenciose del continente, al cual, desde su occidente extremo, contempla a medida que es iluminado por el sol que avanza. Mira de reojo para que no la deslumbre el astro, y a veces, aburrida, le da la espalda. Es un lugar acolchado y tenue, sesgado, que se aparece como en un estado de potencialidad infinita, de inacabables morosidad y recato.” – Javier Marías

Isto há coisas que me chateiam de sobremaneira. Pagar impostos cada vez maiores para um estado que espera ainda que envie remessas é uma delas. Ver o Roberto a rubricar uma exibição de luxo contra o Benfica é outra. Ter escritores espanhóis encantados por Lisboa e, de certa forma, a apoderarem-se dela, é outra ainda.
Os últimos três escritores espanhóis que me passaram pelas mãos no espaço de apenas semana e meia, vai de tecerem comentários sobre Lisboa sem qualquer tipo de pejo.
O primeiro, o senhor Vila-Matas, já é um velho conhecido deste género de abusos. A sua paixão por Pessoa parece servir de justificacao para uma libertinagem de amante desavergonhado. Neste último Aire de Dylan tudo parecia indicar que não o iria fazer. Barcelona, relações estranhas com a fama, o já costumeiro mundo literário, Estados Unidos, problemas geracionais e… Lisboa. Se na minha vida apenas tivesse como certa a obra de Vila-Matas da mesma forma que certos estados americanos tem a bíblia, quase conseguiria jurar que Lisboa seria uma cidade catalã ou um bairro de puro luxo intelectual de Barcelona.
Nos Contos Negros  do Montalbán, lá surge o investigador Carvalho em Lisboa. Ao invés do que geralmente acontece, não há mortos nem cenas sórdidas de sexo entre copos de uísque, mas sim um conto lírico e apaixonado. Uma excepção nas lides de um dos mais icónicos investigadores privados destes mundos das literaturas. Cá para mim o Montalbán estava mesmo a fazer-se a Lisboa à espera que esta retribuísse e que, uma vez mais, se tornasse catalã. Algo cansado deste expansionismo catalão, quase chego a propor que se torne a Catalunha lisboeta e que se acabe com este assédio de uma vez por todas.
Enfiando-me destemidamente por um castelanista de afamada mala leche dou com um prefácio onde se anuncia que Lisboa irá surgir. Irá Javier Marías dizer mal de Lisboa como é de sua tão comum tradição?
Em El siglo há todo um capítulo (o sexto) dedicado às desventuras de Casaldálida num exílio lisboeta repleto de cafés e conspirações de tertúlias entre a comunidade hispanohablante. Até aqui tudo bem. Mas dedicar cerca de trinta páginas a descrever de forma embevecida Lisboa num bater de couro descarado, é demais! Veja-se a frase com que inicia este desabafo! Isto é demasiado assédio para o meu pobre coração!  Estivesse Espanha numa mais vantajosa posição económica e creio que o melhor que tínhamos a fazer era vender Lisboa aos espanhóis para que estes finalmente possam ter a capital intelectual e sensorial que lhes parece andar a faltar.

O tempo das coisas



Esperar um ano pela Feira do Livro de Lisboa. Esperar três semanas para ver os coentros brotarem das sementes que lancei de forma desesperançada. Esperar oito horas para que o despertador me volte a  acordar. Esperar seis minutos para começar a ver as cebolas a dourarem num refogado. Esperar noventa minutos para se saber o resultado de um jogo de futebol. Esperar dezasseis minutos para se completar o aquecimento da máquina de café. Esperar um minuto e meio para ver a água atingir os 70º que abre as portas do mate.
Embora esta espera contínua de que são feitos os nossos dias nos dêem a tranquilidade de saber que a ordem universal ainda se mantém mais ou menos a mesma, há um outro género de esperas que não consigo controlar de forma racional.
Há o tempo de espera para começar a ler um livro depois de o ter comprado ou tomado por empréstimo na biblioteca. Há o tempo para se estrear umas botas recém compradas com a promessa de que a água será impotente de chegar aos meus pés face às camadas defensivas de gore tex. E houve o tempo finalmente cumprido de ano e meio para beber um chá preto comprado no Irão. Pese embora a fotografia do bondoso senhor que mo vendeu me controle as manhãs e já tenha até sido alvo das minhas mais sonolentas fantasias sob forma de um conto que ainda não ousei contar, verdade seja dita que ainda não o tinha  provado. É até mesmo de estranhar que me tenha decidido a trazê-lo para Hamburgo. Do chá iraniano a melhor recordação que guardo foi a de ter bebido algo parecido com vodka numa das salas da biblioteca que albergou o festival quando perguntei à equipa do catering se seria possível beber um pouco de chá na esperança vã de que me passasse uma dor de cabeça. Como gente de bom coração que o são a maioria dos iranianos, não hesitaram em oferecer-me álcool. Para a dor de cabeça realmente não há nada melhor.
A manhã por aqui estava típica de Hamburgo. Céu cinzento, uma chuva miudinha capaz de modelar a mais simpática das personalidades e um frio que torna as luvas e os gorros não nos nossos melhores amigos mas num elemento indispensável da nossa existência.  Para não variar entrego o meu despertar aos poderes infinitos do chá preto esperando que este me diga que é real que estou acordado e, mais do que tudo, vivo. Preciso de um forte, esboço eu em forma de pensamento que nunca se chega a concretizar em palavras audíveis. Inconsciente pego no pacote de chá iraniano e deixo-o o tempo suficiente para adquirir o tom dourado e aquele toque levemente amargo típicos dos chás nos países muçulmanos. E no primeiro sorver veio a memória, o prazer, o reviver, a viagem, as leituras, os sorrisos, o que deixei, o que quis deixar e o que me invadiu sem retorno. Picada de saudade, picada de fantasia, tudo junto numa meia hora de olhos vazios. De nada serviu o senhor Vila-Matas nem os poemas do Manoel de Barros. Muito menos o Die Welt.
Na rua a chuva miudinha e o frio trouxeram-me de volta. Conto agora o tempo de espera que me resta para novo regresso amanhã de manhã como se de uma ordem natural se tratasse.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Medidas visionárias dos mestres

Uma das mais comuns ideias de toda esta longa e penosa história da crise e dos cortes é de que Portugal gasta muito dinheiro do herário público. E talvez seja verdade. Em comparacao com esta Alemanha onde vivo há tres dados quase chocantes onde se prova que os portugueses se comportam como novos ricos esbanjadores.

1 - Iluminacao pública
Nao se percebe porque é que Portugal nao adopta o modelo alemao de apenas iluminar as estradas de cinquenta em cinquenta metros deixando os peoes e os ciclistas à merce de buracos e de jovens com pouco cabelo que gostam de aplicar pontapés com alguma forca a estrangeiros e nao só. A pouca iluminacao que existe nas ruas deriva simpaticamente dos comerciantes que deixam as luzes dos estabelecimentos ligadas ou a das entradas dos prédios. No caso do meu que já nao tem luz há coisa de seis meses, compreende-se que aparentemente também nao faz falta pois tenho conseguido entrar em casa com maior ou menor facilidade.

2 - Polícia
Caso um indivíduo seja vítima dos tais pontapés supracitados ou de um mero roubo à noite pode-se dirigir à esquadra de polícia mais próxima e irá muito provavelmente encontrá-la fechada. Tendo Hamburgo quase dois milhoes de habitantes, compreende-se perfeitamente que à noite só um par de esquadras estejam abertas. Afinal, a polícia é um servico público e nao serve para andar por aí a ganhar horas extraordinárias à parva. No meu caso, a esquadra nocturna mais próxima  encontra-se a seis quilómetros. Claro está que já me imaginei a ser roubado à entrada de casa, ficar sem carteira, arrastar-me para o metro para ir até Hauptbanhof à esquadra e ser apanhado pelos picas no metro e acabar a noite na prisao por nao ter comigo qualquer título de transporte. Pelo menos teria companhia até à esquadra, que é coisa que nos dias de hoje vale ouro.

3 - Limpeza
A limpeza das ruas é da responsabilidade de cada prédio e de tempos a tempos lá se ve alguém a varrer os tres metros quadrados que correspondem à entrada do prédio. As zonas peatonais onde nao há prédios sao limpas ocasionalmente quando a rainha de Inglaterra faz anos ou o St. Pauli consegue derrotar o Bayern (casos de 2002, 1991 e 1949). Estando nós no Outono as folhas vao-se pois acumulando de forma selvagem escondendo o lixo anteriormente colecionado com bastante carinho. Ah, esqueci-me apenas de mencionar que nao é de todo incomum ver as pessoas as varrerem o lixo directamente para a estrada pois apanhá-lo pode provocar um conjunto de complicacoes físicas nada prazenteiras e isto os tempos nao estao para brincadeiras.


Estou confiante que caso Portugal aplique estas medidas, se pouparia muito e bom dinheirinho, tao precioso nos dias que correm. Estou até a pensar em propor aos nossos dirigentes a adopcao imediata destas medidas e verao como voltaremos a ser grandes e a dar cartas no negócio das especiarias.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Da ausencia da metrópole

Esperando o metro
às vezes me soa
que a soma das vozes
à minha volta
é igual ao portugues
silencioso da minha terra natal
(em santarém nao se chega nunca
 a falar,
murmura-se apenas).
Sinto um cochicho de ondas a descerem-me o pescoco
causando aquele arrepio
no qual me costumava aconchegar
quando aprendia os significados
da vida à minha volta.
Entrando na carruagem que
me leva a destinos que
decifro cada vez mais,
fecho os olhos e
ignoro as pessoas à minha volta
como se de bons amigos se tratassem.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Heimat stadt

Uma das obsessões das germânicas gentes prende-se com o conceito de heimat stadt. Claro está que poderia ser um querido e traduzi-lo directamente para português com um cidade natal mas, como muitos tradutores o saberão e poderão sabiamente afiançar, o poder do significado nem sempre é igual. Tirando o facto de que penso sempre em cidade natal como o sítio onde celebrei o último natal, o conceito de heimat stadt para os alemães é algo que os transporta para um sem número de ideias pré-feitas capaz de me excluir directamente dos 11 eleitos para figurar na equipa da semana pese embora tenha assinado um hat-trick e uma exibição de alto nível.
Tendo o café onde as minhas ossadas pousam dia após dia uma série de fotografias na parede a fim de fazer exercitar as mentes dos que aqui ousam entrar, claro está que já me perguntaram se alguma delas correspondia à minha heimat stadt. Sim, respondi eu a uma senhora de alguma idade. Esta, apontei.  Recebi um sorriso aprovador com aquele sentimento paternalista que só um alemão consegue conceder em relação a um nativo do sul da Europa. Ah, e esta, disse apontando para uma fotografia de Varsóvia a preto e branco com um Trabi estacionado em frente de um prédio de outros tempos. Como boa alemã, a senhora não conseguiu esconder alguma estranheza e antes mesmo que conseguisse reagir, apontei para uma outra que tirei no Tarrafal. E para uma em Lisboa. E logo outra em Hamburgo.
Perante tamanha oferta de locais ela pediu a conta e deixou-me com esta profunda ideia de que a minha heimat stadt não é Santarém, mas sim essa mistura quase infinita de sítios por onde já passei e que me marcaram de forma indelével.
Tentei explicar isto. Ela deu gorjeta e saíu.
Na semana seguinte regressaria ao café com um sorriso estranho estampado no rosto quase me dando vontade de lhe perguntar qual é que era a sua heimat stadt.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Cidades Imaginárias (ou de como quase se rouba um título ao Calvino assim à descarada)

Quantas cidades nos cabem na cabeça?
Desde o regresso a Lisboa que não deixo de pensar nisto.
Uma vez mais atrasado e tentando cumprir um calendário desproporcionado de reencontros e cafés suficientes para me manter acordado durante algumas semanas dou por mim a pensar no melhor caminho para o Chiado. Rua do Paraíso e depois? Subo pela Sé para logo descer ou dou a volta por baixo, Campo das Cebolas, Cais de Santarém e por aí? Num momento um mapa de Lisboa abriu-se dentro de mim como se diante estivesse. Corri para mais um encontro sem hesitar nem por um instante nos caminhos a seguir.
Já antes as ruas de Santarém me tinham albergado em passeios onde consegui calcular onde haveria sombra em plena tarde assim evitando o impiedoso sol ribatejanno. Coimbra e Porto também pareceram não me esconder grandes dificuldades. Recordava ainda com infinito carinho o caminho para o Piolho ou as sinuosas ruas da Sé velha até à Universidade.
De regresso a Hamburgo dou comigo a calcular apanhar o U1 até Wandsbek Markt, o 23 até Horner Rennbahn e talvez o 213 até Hasencleverstrasse.
A somar às cidades que posso dizer que conheço e cujas ruas não me são, de todo, indiferentes pelo facto de a elas associar um sem número de memórias espaçadas em tempos de narração interna incoerentes como o são todas elas, há ainda as cidades nas quais deixei a fantasia tomar alegremente conta das memórias: uma Varsóvia onde o palácio de Wilanow até que bem que se poderia avistar do jardim que serve de telhado à biblioteca da Universidade, uma Istambul onde a Mesquita Azul está ali mesmo ao lado do Grande Bazar ou até mesmo uma cidade da Praia onde se pode mergulhar directamente do Plateau para as águas azuis do atlântico.
A todas estas cidades há ainda que juntar as cidades que foram crescendo dentro de mim sem que nunca lá tenha estado. Há uma Buenos Aires onde o Borges ainda anda a beber café, uma Montevideo onde facilmente se pode tomar uma cerveja com o Galeano ou discutir agricultura com o Mujica num desses intermináveis cafés com bancos de madeira onde ainda se fumarão charutos que desenharão no ar palavras de Onetti a jeito de promoção e dignificação das artes. Também por entre fumo seria possível falar com o Ginsberg em São Francisco na City Lights. Poderia até dar um pulinho de fim de semana a Big Sur e beber com o Kerouac enquanto haikus surgirião da sua boca com o bater das ondas nas rochas como música de fundo. O cheiro do mar seria igual ao de Ofir.
Como estas há muitas outras cidades onde conheço ou julgo conhecer ruas e cheiros, guiando-me de forma inconsciente de forma a garantir o prazer máximo de se usufruir de espaços que mexem connosco, nos fazem sonhar, querer viver mais e mais, ler mais, ser mais.
Mas no fundo há uma questão que me tem acompanhado nestes últimos tempos:
Quantas cidades nos caberão na cabeça? 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Olha outro poema do Pacheco

Porquanto o teu olhar sejam pontes
andarei entre cá e lá
julgando ler esperanças
nas fantasias que se esfumam.
Sorrio, não.
Desrio-me em cerveja
tentando sei lá tudo.
Amanhã espero acordar
e voltar a ser.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Festival por terras germânico-dinamarquesas

Ainda com um jet lag existencial aterrei num comboio rumo a Niebull para ir para mais um festival.
À minha espera na estação de comboios estava uma educada senhora num volkswagen azul de inícios dos anos 90 e que desde logo me afiançou que o espírito do festival só se equiparava aos que houve em 71 quando o Jimi Hendrix ainda estava vivo. O facto de ele ter morrido em 1970 afiançou-me desde logo muita coisa fazendo-me esperar o melhor.
Herr Lôpez, ouvi enquanto saía do carro agradecendo a todos os antigos deuses egípcios o facto de ter chegado são e salvo ao local do festival.
De forma germânica fui intimidado a ir fazer o soundcheck que logo se tratava de me instalarem ignorando o real peso de umas malas que, mais que tudo, tinham uma identidade lusitana dentro.
Contar em inglês, reabituar-me às tão distintas reacções do público alemão e o tal de jet lag existencial aqui a martelar de forma constante foram barreiras que tiveram que ser vencidas nos primeiros 23 segundos, tempo de tolerância oferecido por qualquer público.
Ainda sem saber o impacto desta primeira sessão de contos de regresso a terras germânicas, vi-me a invadir uma tenda de circo com comida à qual só se tinha acesso mediante comprovativo de artista. No caso, uma pulseirita vermelha apertada de forma a cortar-me ao de leve a circulação sanguínea que isto esta gente não faz a coisa por menos.
Ao ser recebido por olhares frios não pude deixar de sentir que isto há gente que está para a simpatia como Hamburgo está para o sol e bom tempo. Mas ribatexano que se preze não se deixa intimidar nunca. Hora após hora regressei à tenda conquistando pedacinhos de pão com queijo e até um copo de água. No pequeno-almoço do segundo dia até ousei pedir café. Responderam um não sei quê e fui-me embora derrotado. Um desânimo profundo conquistou a minha alma. À saída da tenda apercebi-me que não era aquele o sítio para os artistas irem comer mas uma outra tenda ao lado onde me esperava um generoso buffet. Talvez, mas só por talvez ter andado a comer o que estava reservado à mocidade do circo é que me tinham sido dirigidos tão simpáticos olhares.
A acabar o segundo dia de festival e continuando eu de roda do buffet dou com dois jovens ingleses a meterem conversa, coisa assaz rara por parte das gentes da organização cuja única coisa que me iam perguntando era se tinha as minhas pulseiras que comprovavam a minha existência.
Quando dou por mim reparo que eram nem mais nem menos que estes mocitos:
https://www.youtube.com/watch?v=E8QpV8_WjrI
Já com a chuva a fazer-me lembrar de que é inerente à condição humana uma pessoa molhar-se e que isso pode acontecer mesmo sendo verão, lá vi o concerto enquanto pensava se a minha tenda ainda estaria montada ou já teria navegado qual caravela rumo a terras mais amenas.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Sobre o regressar

Depois de um mês por Portugal, o regresso à Alemanha deu-se com chuva apenas para fazer recordar que durante um mês a minha pele andou a beber sol como quem sofre de uma qualquer carência vital. Andou igualmente a beber o contacto com outras peles que me faziam tanta ou mais falta quanto o sol.
Da frustração que foi a passagem por Lisboa onde senti que nunca consegui estar com ninguém como queria à experiência intensa de três semanas num São Pedro do Rio Seco que terá menos habitantes que esta Hasencleverstrasse onde vivo.
Pelo meio ficaram deliciosas passagens anónimas por Coimbra e Porto. Matar saudades da Francesinha da Cufra ou da sandes de pernil do Guedes. Ouvir balada Coimbrã nas escadas da Sé. Regressar a uma capital do Ribatexas sob o sol escaldante que me modelou durante anos a fim.
Voltar a contar em português foi um desafio que só me senti vencer já perto do final da minha estada quando as minhas veias já estavam verdadeiramente entupidas de enchidos, pão caseiro e vinho. Difícil vida esta a que fui submetido em plena aldeia beirã! Histórias de contrabando e sacanices sem fim entre toques de calor e afecto que julgava apenas pertencerem a um país que já tinha como quimérico ou apenas de livros.
Talvez Torga, cujo diário me acompanhou neste regresso.
Contudo, não consigo deixar de agradecer a todos com quem me voltei a cruzar o prazer das palavras que contei e que me deram. Entre os votos de um regresso em breve e convites para germanices as palavras voltaram a ganhar calor dentro de mim e a vontade de viver cada instante como se de um momento único se tratasse foi quase imperial.
Em breve a Ryan Air me trouxe de regresso a este país onde contar em inglês perante um público mais frio já perto da bem mais fria Dinamarca.
Ainda meio de ressaca de tudo isto sinto-me finalmente aterrar em Hamburgo. O tempo está instável tal como, de certa forma, também eu me sinto.
Abraço-me à Rosa Montero e às suas leituras antes ainda de me entregar de volta às minhas análises antropológicas destas gentes. Não perdem pela demora.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Do engano

Já vos aconteceu ler um livro por puro engano?
E falo num verdadeiro engano e não naqueles que os críticos nos costumam impingir aqui e ali como me aconteceu com a Ípsilon e o B Fachada, caso que ainda hoje me alimenta pesadelos e sobre o qual não consigo ainda falar sem que me venham lágrimas aos olhos.
Já que estou a escrever como se estivesse sentado num divã de um psiquiatra, confesso igualmente que sou impulsivo com os livros. Como acontece com muito boa gente, sempre comprei mais do que consigo ler e as bibliotecas representam para mim inimigos mortais de frustração ao saber que nunca conseguirei jogar olho nem num quarto em acervos que sempre crescem a um ritmo mais feroz do que o da minha leitura.
Pois acontece que na minha última incursão à Zentralbibliothek desta Hamburgo deparei-me com este livro aqui do lado. Uau, pensei. Vou ler Patrícia Melo.
Num momento formulou-se na minha mente a imagem de uma das capas de O Prazer da Leitura da FNAC de há uns anos atrás quando li um pequeno conto que me tinha agradado de sobremaneira.
Contente, regressei a casa.
Dedicatória do livro a Rubem Fonseca.
Ela conhece o Rubem Fonseca pessoalmente? (Inveja crescente no meu peito)
Primeira página e vai de me deparar com escrita em português do Brasil. Hmm, estranho.
Espreitando a capa, dou-me conta que tenho nas mãos uma edição da Companhia das Letras. Uau, editada no Brasil e com direito a tradução!
É então que uma dúvida me começa a assaltar: será esta a mesma Patrícia que li na colectânea da FNAC? O estilo parece-me tão diferente daquilo que me lembrava, fazendo-me até crer que estou a ler o próprio Rubem Fonseca.
O mundo negro e insano de relações em estreita harmonia com assassinatos abençoadas por um ritmo narrativo ferozmente veloz... É Rubem Fonseca. Só pode ser.
Graças às prodigiosas capacidades da internet, lá descobri que quem eu queria ler era Patrícia Portela.
Mas não me queixo do que li, até porque o engano foi tão deliciosamente completo que não deixei de me espantar ao terminar o livro e ver que foi mesmo escrito pela Patrícia Melo e não pelo Rubem Fonseca.
Haja mais enganos assim!

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Diário de um fescenino - Rubem Fonseca

Rubem Fonseca.
Rubem Fonseca.
Rubem Fonseca.
Nos últimos tempos tem sido o meu mais fiel companheiro de leituras. Bem mais fiel do que as personagens que cria.
As nuvens sexuais por onde se move a personagem principal deste Diário de um fescenino são comuns a muitas de outras personagens dos seus contos, quase nos fazendo sentir que estamos a visitar um velho amigo que dispensa muitas apresentações. Um desejo ardente e constante pelo corpo feminino num elogio constante à sua beleza aliados a um comportamento irregular são pontos fortes da sua narrativa.
De certa forma é quase inevitável não nos lembrarmos de Bukowski ao lermos estas páginas confessionais. Mas em comparação com o famoso beat ganhamos humor. Bastante. Um sarcasmo escarninho constante que nos faz ler sempre com um sorriso maroto na cara.
O enrolar na acção a que somos convidados faz igualmente lembrar o Processo de Kafka ao vermos a personagem principal a cair num caso judicial algo aparatoso.
O final, como não podia deixar de ser, é surpreendente.
Rubem Fonseca é não só um mestre no domínio  da língua como da narrativa. Aqui fica a prova  uma vez mais.
A jeito de despedida deixo ficar duas notas tremendamente pessoais:
1) A alegria tremenda de sentir os meus olhos passarem pelos seus textos.
2) A tristeza igualmente tremenda de saber que a Zentrabibliothek não tem mais livros dele que me possam alimentar nos próximos tempos.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Que bom é fazer um churrasco em Hamburgo!

Chegada esta época do ano os parques de Hamburgo enchem-se alegremente com os fumos que saem dos mais diversos assadores fazendo até crer que o D. Sebastião irá ressurgir por estas bandas e a bordo de um BMW, assim contrariando aquilo que sempre me foi dito na escola. A mim e a tantos outros.
A fim de me integrar nos costumes desta gente lá me decidi a também tentar estas artes churrascatórias. Depois de me ter informado de forma séria sobre os procedimentos dos locais, lá me muni de variadas salsichas e carne temperada num molho de cá que facilmente se traduz para português como um "eu não quero nem saber o que é que leva".
Estando alegremente a acabar de grelhar uma última leva de salsichas eis que o céu de repente escurece e termino debaixo duma manta impermeável a ver a chuva a apagar o fogo que tão carinhosamente ateei. Pese embora tenha ficado algo chateado com isto, começou a crescer em mim uma convicção que isso se devia, única e exclusivamente, à má selecção gastronómica. Isto há pecados pelos quais esta gente tem que pagar.
Após leve maturação de ideias, lá fui comprar umas sardinhas congeladas (a loucura, oh meu deus, a loucura) e propus-me a nova churrascada.
Agora sim! Tudo certinho para correr bem!
Nada mais falso!
Acabei debaixo do toldo de um café à espera que a trovoada com que os deuses me presentearam passasse. Como não passou, passei-me eu e nadei até casa entre as ruas encharcadas de Hamburgo.
Talvez a culpa não esteja na selecção gastronómica mas numa total falta de conceptualização do termo "Verão" por entre estas hostes.
Peço, pois, ajuda a alguém letrado que esclareça esta gente que é possível ter verão sem chuva. Difícil, mas possível.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Diz-me o que contas e dir-te-ei quem és

Uma das perguntas que sempre me é mais difícil responder quando proponho  uma sessão de contos é a de que tipos de estórias conto.
Uma mistura, digo. Contos tradicionais e contos de autor que se misturam de tal forma que no final já nem se sabe bem onde começa um e acaba o outro.
Insatisfeitos com a resposta, costumam-me pedir referências. Nomes como os seguranças dos aeroportos pedem documento de identificação. De forma despiciente lanço alguns nomes que me passem pela cabeça na altura sem sequer ousar pensar que irão surpreender os meus interlocutores. Regra geral não surpreendem, sendo apenas interrogado sobre se esses nomes são boas referências.
São as minhas, ora porra, penso responder.
  Contudo, há referências, nomes aos quais não se pode fugir por muito que se queira. Um desses eleitos a que andei a fugir durante anos largos foi o de Antonio Rodriguez Almodóvar e os seus Cuentos al Amor de la Lumbre.
Desde que comecei nesta andança dos contos que o nome dele começou a saltar aqui e ali como um dos grandes desta cultura ibérica onde me vi nascer. Eis então que numa recente visita à Zentralbibliothek de Hamburgo ele me voltou a saltar das estantes de literatura em espanhol tornando-se irresistível não trazê-lo.
E lê-lo, claro está.
Assim fiz.
Tendo sido um dos pioneiros na recolha de contos, não posso deixar de destacar a extensa introdução, ideal para profissionais do conto e teóricos da tradição oral. Pessoalmente achei demasiado estruturalista, mas tudo bem. Há quem goste. Quem não goste pode sempre passar à frente e mergulhar verticalmente nos contos.
Em relação à recolha, a transcrição dos contos é irrepreensível e a selecção não se podia esperar melhor. A nível de organização encontra-se igualmente bem dividida por temáticas incluindo distintas variantes do mesmo conto oferecendo-nos uma visão globalizante. De certa forma estes livros representam um "best of" da nossa cultura popular ao mesmo tempo que nos faz viajar pela península com indescritível prazer.
As ilustrações do Pablo Auladell conferem-lhe uma magia ainda maior sendo, por si só, uma outra estória, um outro conto, uma outra oportunidade para viajar ou continuar a viajar.
Edição de luxo de um livro que é um luxo.
Indispensável para qualquer narrador que se preze e outros amantes dos contos.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Orgia Lusófona

No seguimento disto regresso a escrever sobre livros.
Decisão arriscada, desponderada, resultante pura e simplesmente de quem ainda está em convalescença de uma verdadeira orgia lusófona nestes últimos dias.
Que bom ter regressado por momentos a Lisboa com a História do Cerco, com as eternas divagações sobre expressões  tão popularmente portuguesas e o sarcasmo histórico do Saramago a apimentarem um pouco mais a memória dos últimos três anos passados em Lisboa.
Viagens assim não têm preço.
Sobretudo quando a personagem principal do livro era minha ex-vizinha.
Para além da dupla viagem fez-me o Saramago atirar-me a um moroso processo de revisão com outros olhos. Rever-me. Obrigar-me a um trabalho estranho e persistente, com pausas, ponderações. Com chás e estudos de alemão por entre meio para aliviar uma certa dor crónica de me reler.
Se ler Saramago é sempre um certo regressar, ler Mia Couto é um regressar ainda mais profundo.
Grândola, 2009. As mãos suavam-me de forma quase incontrolada quando o apresentei e ao Agualusa perante uma semi-multidão que só esperavam que me calasse para ouvir outras vozes mais carismáticas. No final, a única palavra de agradecimento veio precisamente do Mia Couto. Nesse momento algo em mim estremeceu. Gostaria de conseguir apresentar conclusões deste momento, mas não consigo. Lamento.
O Outro Pé da Sereia faz-nos igualmente viajar no espaço e no tempo. A dupla narrativa que acaba por ir convergindo nunca se chegando a tocar encontra-se repleta de imagens poéticas, relatos deliciosos e humorísticos apenas capazes por quem domina a língua de forma maestra. Mas que dizer mais? Mia Couto é um conceito que, de certa maneira, se auto-define.
Para o final deixei mais um "velho amigo" dos tempos de Southampton (como vai longe 2004). O brasileiro Rubem Fonseca e o seu fascinante Ela e as outras mulheres que não consegui deixar de ler. Vinte e sete contos. Vinte e sete mulheres. Ritmo vertiginoso. Um dia apenas me durou nas mãos.
Há mortes, traições, humor cáustico, mais mortes, algum sangue, crueldade e uma vontade de não parar de ler mesmo depois de se ter terminado o livro.
Como todos os outros dele, de resto.
E acho que já está. Três anos depois voltei a escrever sobre livros.
Cuidado!

quarta-feira, 5 de junho de 2013

A boa da vizinhança

Que os vizinhos sempre foram boa matéria para relatos, isso é coisa que ninguém dúvida.
Recordo com particular carinho o velhote que morava por baixo do hostel e que fazia as tábuas do soalho vibrarem a seguir ao almoço quando se lembrava de pôr fado um pouco mais alto do que o que seria considerado normal. O Alves com o seu cabelo a rivalizar com o Marco Paulo nos anos 80 e sempre pronto a partilhar um palavrão com os transeuntes que ousavam passar em frente ao tasco. Até mesmo o Raúl, de Badajoz, que sempre inventava novas maneiras de conseguir dinheiro para matar os desejos que o vício provoca.
Ora acontece que por estas bandas também me encontro bem provido de vizinhança.
É o vizinho do lado que bate recordes em encomendas da Amazon e que nunca está em casa para as receber, encarregando-se os profissionais da DHL de mas entregar a mim, confiantes na minha boa fé. É a vizinha de cima que gosta de pôr música de discoteca à 10 da manhã ou a do rés-do-chão que sempre espreita quando alguém entra no prédio.
Mas estes são casos normais que, seguramente, já terão acontecido a muito boa gente por esse mundo fora.
O que não é normal é a vizinha do prédio ao lado dedicar-se a gritar aos cães dia após dia. 50 anos, tatuagem à marinheiro no braço esquerdo, cabelo a atirar para o grisalho a fazer inveja a um ensebado e a terminar numa trança. Uma predisposição física a lembrar vagamente o Obélix apenas para completar a descrição. Esta simpática senhora é autora de expressões que ficarão para sempre retidas na minha mente como: Velha porca nojenta! ou Este é o meu quarto, ouviste? Meu quarto! 
Claro está que em alemão tudo isto soa bastante melhor.
Pese embora já me tenha abordado em conversas de varanda às quais me esquivei a sorrir, o melhor estaria para vir. Mas não desta senhora.
No andar de cima mora um casal de velhotes cuja mulher sorri e o marido grunhe quando me vêem. No outro dia interpelou-me com ditos sangrentos aos quais respondi com um educado "Tenha um bom dia", continuando a minha penosa caminhada escadas acima. Mas o que é realmente digno de registo foi ter esta criatura a desejar bom jantar enquanto jantava com a Katrin na varanda no outro dia. Logo senti uma vontade de terminar o jantar dentro de portas, confesso.
Obrigadinho, respondi.
Eu já jantei.
Então tenha um bom serão.
E assim ele desapareceu.
Consegui! Fui persuasivo o suficiente para o enviar de volta aos seus aposentos. E isto de forma educada! Num súbito momento senti uma fé inabalável nas minhas capacidades linguísticas!
Nada mais falso.
Qual foi o meu espanto quando o vejo surgir de novo na sua varanda com uma cenoura na mão, a voz a ecoar no quarteirão, a dizer que também ele comia. Uma cenoura! Imaginem! Sou um coelho! Rnhgrnhgrnhg!
Embora o meu nível de alemão já me permita responder adequadamente a este tipo de situações, limitei-me a dizer Guten apetit e bis morgen.
Embora me tenha conseguido controlar, confesso que não sei como reagir a próxima vez que me cruzar com ele nas escadas. Talvez o cumprimente com um sorriso cínico e um Boa tarde senhor Coelho.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Social books

Confesso que tenho andado obcecado com livros.
Ao contrário do que se possa pensar não ando obcecado com os meus livros ou com as minhas leituras, tema por demais vulgar. Isso é algo que já nem sequer pondero. Confesso-me deprimido ao ler Tchekov, entusiasmado ao ler Moacyr, psicótico ao ler Woody Allen e com vontade de viver ao ler Saramago.
Ando obcecado, sim, com os livros dos outros.
O facto dos alemães desconhecerem na sua maioria a beleza e utilidade dos cortinados faz com que amiúde me veja invadido por impressionantes colecções de livros nas salas de estar alheias. Se nos transportes públicos me vejo em ridículas posições a fim de descortinar o que é que os restantes convivas lêem, quando vejo tremendas estantes recheadas de livros a entrarem-me pelos olhos dentro nem sei bem como reagir. Sinto vontade de saltar as cercas dos jardins e catrafanar-me diante das estantes e saber que raio lê esta gente.
Quando em situações sociais sou apanhado a espreitar as estantes alheias reparo que os alemães me sorriem e cedo se prontificam a recomendar-me um ou outro autor e até me incitam a levar os livros comigo.
Temo, pois claro.
Que raio de atitude é esta? Onde é que estão os biblôs e os cães de loiça? As fotografias das férias em Maiorca? O artesanato comprado em Marrocos a povoarem as salas?
Logo percebi que têm estas gentes um orgulho tremendo no que já leram não hesitando em partilhar o conhecimento com o resto da humanidade.
Isto assusta-me pois tenho ainda os traumas de emprestar livros que não regressam, que esqueço a quem emprestei e que quando não esqueço perco o contacto da pessoa a quem o emprestei. E o livro. Lembro-me da forma como não se dizia o que se lia na faculdade. Ou de como quando se dizia se ignoravam os pedidos de empréstimo com um "ah, pois, esqueci-me. Amanhã a ver se não me falha a memória".
Que seja esta atitude germânica uma forma de afirmação da individualidade e de orgulho pessoal, sim, é. É uma outra realidade, chocante talvez para quem vem de Santarém, mas à qual acho que me conseguirei adaptar sem grande esforço.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Celebrações pagãs

À semelhança de tantos e tantos antropólogos que arriscaram a vida pelas terras selvagens de África e América, eu arrisco diariamente a minha em terras não menos selvagens que são estas da Alemanha.
Tal como tenho vindo aqui a descrever, os nativos são capazes de gritar furiosamente quando um peão passa um sinal vermelho e elogiar a tenacidade dos condutores que o fazem com aparente desprezo pela vida humana. Bebem cerveja na entrada das estações de metro e têm bandeiras de piratas nas janelas, que também podem ser identificadas com um clube de futebol local.
Foi, pois, com algum temor que no outro dia ouvi música na rua. Embora estivesse numa pequena aldeia aparentemente perdida na Saxónia creio que tudo é de se esperar vindo destas gentes.
Com a cautela necessária fui até à janela da casa onde estava e eis que me deparo com uma enorme árvore a ser carregada num tractor pelas ruas da aldeia. A circundá-la ia uma pequena horda de mocidade em idade de fazer coisas mais úteis do que beber cerveja em público. Muitas outras pessoas seguiam o curioso cortejo com máquinas fotográficas enquanto moviam os corpos numa forma também conhecida como dança.
Não escondendo uma certa curiosidade infantil, muni-me dos instrumentos necessários e resolvi ir averiguar com genuíno interesse antropológico esta manifestação de cultura indígena e partilhá-la com os meus conterrâneos e não só.
Junto ao único tasco da terra os jovens envergando trajes curiosos quase capazes de fazer inveja às gentes da Bavária resolveram erguer a árvore entre gritos de Zu... gleich! e pausas estratégicas para a degustação de cerveja. Isto aqui não há Isostar para ninguém! A cerveja representa para estas gentes fonte de vida e inspiração nos momentos mais complicados.
Uma vez erguida a árvore ouviu-se um pouco mais da música local, bebeu-se cerveja e eu afastei-me com o nítido receio de que, mais dia menos dia, me atem uma árvore aqui a casa.
Deixo-vos um singelo vídeo captado em condições complicadas e quase que puseram em risco a minha vida.



domingo, 26 de maio de 2013

As sombras das bibliotecas

Fruto dos anos de trabalho na Biblioteca de Grândola ganhei este vício mesquinho de entrar em tudo o que é biblioteca e deixar-me navegar de forma mais ou menos livre por entre prateleiras repletas de livros. Gosto do cheiro a pó, de ver as capas mais ou menos encarquilhadas revelando o êxito junto dos mais diversos leitores ou o descuido dos mesmos. Gosto de me perder. De me encontrar nas cotas ou quando encontro um nome conhecido.
Foi, pois, com clara expectativa que ontem me abalancei para visita à Biblioteca Central desta Hamburgo chuvosa que me acolhe as ossadas.
Que dizer?
Enorme, claro está.
Sistemas computorizados de requisição de livros. Número quase infinito de requisições.
Discoteca impressionante.
Pautas.
Dois pisos intermináveis inteiramente dedicados à ficção.
Secção bastante considerável de livros nos mais diversos idiomas.
Como se está mesmo a ver, lá me senti eu tentado a ir espreitar as lusas coisas.
Depois de ter lido o conto "Um Monte de Livros no Chão" da Filomena Marona Beja fiquei com um bichinho maroto de ler Saramago. Ou Eça. Ou Camilo. Ou Torga. Ou Cardoso Pires. Perfeito, não?
Os meus olhos começam então a debruçar-se sobre as prateleiras:
Saramago, Mia, Agualusa, Eça, Camilo, Lobo Antunes, Rubem Fonseca e as Cinquenta Sombras de Grey.
Pegando num Saramago e num Mia fugi dali com o coração a bater forte julgando ter tido uma alucinação. Não ousando olhar novamente, parti rumo à parte hispânica a fim de matar mais um pouco desta minha curiosidade.
Manuel Rivas, García Márquez, Galeano, Jaume Cabré, Cela e Cincuenta Sombras de Grey.
Pelo caminho reparei que também havia exemplares em russo e sueco.
Pegando num livro de contos corri dali para fora. Requisitei ainda um livro de alemão pelo caminho e refugiei-me em casa onde, confesso, já tive até pesadelos em que estava a ler as Cinquenta Sombras de Grey de avental à cintura.
Afogo-me então entre Saramago e Indirekte Fragesatz numa verdadeira terapia ao meu subconsciente.
Espero melhoras em breve.


PS- Segundo consegui apurar,

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Roubo germânico

À semelhança do que acontece em todas as outras grandes cidades europeias onde a bicicleta consegue vencer as intempéries diárias tornando-se num transporte comum, também em Hamburgo o roubo de bicicletas é elevado e tremendamente desconsiderado pelas autoridades.
Como é que sei isto?
Nada como viver as situações para de novo garantir a eternidade da "experiência como madre de todas as cousas" como uma frase sábia e actual. Frases destas surgiram por alguma razão. Confesso que ainda não consigo esconder algum desconforto ao chegar a casa e lembrar-me dos restos mortais do cadeado pendurados nas grades do jardim. Assim de duro e cruel porque, ao contrário do típico larápio lisboeta, que demonstra, trabalho após trabalho, merecer o título de Mãozinhas ou Levezinho sendo capaz de desmontar o mais sofisticado cadeado deixando para trás todas as pecinhas que desmontou caso o dono o queira voltar a montar, aqui corta-se os cadeados e já está. Não há cá pão para malucos!
Nada como o pragmatismo germânico, pensei eu enquanto removia o cadáver a fim de contribuir para o bem estar social e não obrigar as crianças do bairro depararem-se com esta bárbara realidade.
Ainda não recuperado deste choque eis que me deparo com a evidência de que me roubam igualmente o jornal. Tendo assinado gratuitamente quatro edições do Zeit (jornal equivalente ao Expresso) a fim de conseguir desenvolver um pouco mais o meu aleijadinho nível de alemão, apercebo-me de que recebi apenas uma e meia. E isto se a revista contar como meia.
Desta feita será um qualquer bondoso vizinho que ao ver a minha caixa de correio tão cheia não hesita em aliviá-la deste fardo. Sempre a contribuir para o bem comum, estes alemães.
Uma vez que me vejo assim privado de desenvolver por completo as minhas capacidades linguísticas sinto vontade de escrever uma pequena nota em bom português e deixá-la na caixa de correio dos meus vizinhos:
A próxima vez que me roubar o jornal, juro que lho emprenho pelas orelhas. Danke.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Kitschland

Achando que esta ameaça de primavera em Hamburgo já começava a ser demais, resolvi procurar o já saudoso inverno numa ilha chamada Förth. Localização: norte, já perto da Dinamarca.
Os autóctones quase que falam alemão, pese embora haja uma clara predominância de expressões de origem duvidosa como é o caso de um certo "moin, moin"* levemente cantado. Prova da estranheza deste idioma é o facto de ser capaz de fazer as pessoas sorrir quando se saúdam.
Sendo uma ilha perfeitamente explorável ao alugar-se uma bicicleta por 5€/dia, lá o fiz sentido na pele o que terão passado o Serpa Pinto e o Capelo e Ivens nas suas explorações africanas. A incerteza do que iria encontrar foi constante e sempre duvidei se estaria  preparado para o que encontrasse. Mas a adrenalina é capaz de coisas extraordinárias!
Vencendo um forte e constante cheiro a excrementos de ovelha e de cavalo que controlam a ilha lá me lancei à exploração e descoberta de pequenas aldeias onde, entre cafés simpáticos e casas dignas de hobbits (telhados de palha e consideravelmente baixas), me deparei com o principal objecto deste relato: um café onde a palavra Kitsch não tem poder suficiente para o descrever.
Se bem que seja comum à maioria das pessoas que vivem à beira-mar uma certa tendência para se deixarem levar pelos demónios do kitsch (âncoras, representações de gaivotas, personagens algo parecidas com o Capitão Haddock a espreitarem pelos mais diversos sítios e os mais variados modelos de barcos por todo o lado), o sítio que vos vou descrever em seguida ultrapassa qualquer realidade ou a mais negra das fantasias.
Alte schule, ou Escola Velha na nossa boa língua latina, está numa encantadora aldeia de nome impronunciável onde as ruas são limpas e as pessoas sorridentes. Passando um pequeno portão onde há um aviso para ter cuidados com as mini-galinhas que podem fugir ou ser pisadas a qualquer instante, entra-se num jardim onde começam a surgir as primeiras réplicas de anjos barrocos. Nada que assuste um explorador do meu calibre, pensei.
Mas na realidade eu não estava minimamente preparado para o que o interior da casa me reservava.
Mesas com nomes tão inspiradores quanto Mesa do Coração, Alice no País das Maravilhas ou Canto dos Ursinhos de Peluche fazem parte de toda um conjunto de parafernália que termina gloriosamente em duas arcas frigoríficas cheias de doces capazes de matar o mais resistente corredor de maratona numa questão de segundos. As verdadeiras montanhas de natas a envolverem fatias de bolo de chocolate e a proposta de beber um vulgo latte machiato com xarope de canela e dupla camada de natas causaram-me algum enjoo, confesso. Mas não foi esse enjoo tão grande quanto o sentido ao deparar-me com a empregada. Uma mulher nos seus cinquenta com um vestido cor de rosa onde o corpete a segurar o passar do tempo e as meias brancas de renda se aliavam de forma a produzirem uma das mais grotescas imagens que já me foi concedida ver nestes dias da minha vida. Claro está que o facto de ela dizer "aqui está o seu prazer" ao servir à mesa estas bombas não ajudou a melhorar todo este cenário dantesco.
Mas o melhor ainda estaria para vir.
Quando paguei recebi em troca um coraçãozinho de feltro para que me recordasse eternamente daquele lugar.
Na realidade, não tinha sido necessário tanto trabalho. Com ou sem coraçãozinho sempre me irei recordar dele.



* Expressão equivalente ao mais comum e aceite Guten morgen

terça-feira, 23 de abril de 2013

Fumaças literárias

Neste Dia Mundial do Livro decido-me a escrever sobre uma das coisas que faz tempo acompanha as minhas leituras: o narguilé.
Parece piada. Não o é. A junção dos dois é para mim quase tão perfeita que às vezes consigo até marcar quantos terei fumado durante um livro. O Baudolino, que estou preste a terminar, vai com sete.  A maioria das pessoas marca o tempo que demorou a ler um livro. Eu marco-o com narguilés.
Quase consigo precisar no tempo a primeira vez.
Foi na cave do épico 222 ali pelo Saldanha que fui confrontado pela primeira vez com tão deliciosa mistura. Os tempos eram outros. Eu nunca tinha pago irs. Apesar de ter começado a pagá-lo e das voltas que a vida me tem dado, muitas foram as vezes que voltei mesmo tendo a minha pequena colecção privada de narguilés. Se por um lado havia a simpatia do Nasser, por outro a natural decadência do lugar, ideal para longas horas de solidão foram factores determinantes para este meu regresso constante.
Outros lugares houve que me marcaram em especial: em Istambul rodeado de velhos que discutiam futebol (só podia ser futebol graças à forma apaixonada como berravam entre eles), em Urmia entre contadores de estórias e clientes admirados com tal presença de comitiva internacional ou em Cáceres numa antiga cave de vinhos remodelada ao gosto marroquino e com rumba a derramar-se pelos altifalantes.
Por Hamburgo, e apesar da grande comunidade turca aqui presente, confesso que nunca me senti particularmente entusiasmado a entrar em nenhum café de fumo. Todos eles têm ar de café mafioso russo: pouca luz, televisões gigantescas a transmitirem futebol, neons roxos do lado de fora e nomes tão atractivos como Shisha Palace ou Cocktail Shisha.
Contudo, no outro dia resolvi vencer todo este meu preconceito e lá me resolvi entrar num destes sítios a fim de vencer a hora que me restava de uma espera. De Baudolino na mão lá me encaminharam para uma mesa. Sofás confortáveis e uma música detestável. Num momento imaginei-me de volta a Magalluf rodeado de ingleses e alemães em plena adolescência a embriagarem-se como se não houvesse amanhã. Em meu redor havia uma mescla de clientes que ia desde jovens de véus a cobrirem-lhes por completo a cabeça até um grupo de Erasmus onde se destacava um espanhol que a cada dois minutos perguntava a um outro: Que dijo? Vaya mierda de idioma, el alemán!
Cumpri a minha hora com rigor espartano e um bom avanço baudolinistico. Não consegui esconder uma certa satisfação quando regressei ao ar livre e ao ruído agradável de comboios e carros junto à Estação Central (vulga Hauptbahnhof).
 Hoje, quando terminar estas lides Ecoanas aqui por casa, marcarei possivelmente o oitavo.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Abutrismo livreiro

Se há coisa que não consigo resistir é a uma banca de livros. Não há feira da ladra ou feira do livro usado onde não me debruce à procura daquela oportunidade única de encontrar o negócio do século fazendo-me valer do despreço alheio pela leitura. A típica posição de leve inclinação ou de joelhos à volta de caixas enchendo os dedos de um pó espesso ocupa já uma parte significativa da minha vida logo a seguir à de dormir e à de sentado a uma mesa a comer.
Talvez seja esta uma consequência directa dos anos de biblioteca ou dos ainda maior anos de certa penúria financeira ou de pura e simples cromice literária. E de que forma celebro quando alcanço um qualquer feito notável! Não consigo deixar de sorrir durante um dia inteiro ao conseguir a obra completa do William Carlos Williams por 2€ ou os melhores contos do Alejo Carpentier por 1€. Isso pode ser comprovado neste post.
Contudo, no outro dia fui acometido por uma certo  e profundo sentimento de tristeza.
Ao caminhar pelas ruas de Copenhaga, o mais barato que consegui comprar foram livros. Um velho alfarrabista num espaço verdadeiramente apaixonante estava a vender ao desbarato o que restava das suas colecções antes de fechar a livraria por completo. Cada livro estava a ser vendido por menos de 1€. Um café em Copenhaga custa cerca de 4€.
O livreiro ostentava um certo ar de profunda melancolia enquanto via os abutres (entre os quais me incluí) à procura das melhores carcaças entre os restos mortais.
E Lisboa veio-me de novo à memória. Antes de deixar a cidade e vir para estas terra germânicas que albergam as minhas ossadas resolvi ir à Barateira fazer a minha despedida. Despedi-me sozinho e em choque com o seu fecho.
No outro dia e já por estas terras hamburguesas, andava por uma loja de segunda mão à procura de mesas de cabeceira aqui para casa quando me deparo com o facto de os livros serem gratuitos. Quem comprasse o que quer que fosse poderia levar os livros que quisesse sem que pagasse mais por isso.
Verdade que tenho que concordar com o Gabriel Zaid sobre o facto de haver livros a mais e leitores a menos, mas não consigo deixar de esconder uma certa tristeza ao ver este destino a tornar-se cada vez mais comum.
Num momento imaginei a amargura dos autores a verem os seus livros a serem tratados como lixo, o desespero de editores e livreiros ao verem que o que ganham não quase não é dinheiro e saber que chegada a época de grelhados ao ar livre, um livro é uma forma bem mais barata e eficaz de grelhar salsichas ou sardinhas.
 


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Da beleza poética das viagens de comboio

Um dos sítios onde o germânico hábito de atropelar pessoas mais se faz notar é nas estações de comboio. A forma como estes amigáveis e civilizados portentos da natureza se empurram e passam à frente a fim de conseguir garantir um bom lugar sentado é qualquer coisa de inexplicável. Muitos serão até capazes de ver pequenos laivos poéticos semelhantes aos do rebentar da bomba atómica.
O bonito e singelo episódio que aqui vos vou relatar passou-se na sexta-feira santa.
Sendo feriado antes de fim de semana alargado, creio que se encontravam reunidas todas as condições para um momento de violência eterna capaz de figurar nos anais da história como o célebre caso da antiga ponte das barcas na nossa Invicta cidade do Porto.
Levado na loucura da Estação Central de Hamburgo, lá consegui encontrar lugar sentado, perante o olhar meio invejoso de meia dúzia de cidadãos que, com certeza, bem me desejariam crucificar apenas para sentirem um pouco mais intensamente o espírito da época.
Depois de ter trocado de comboio em Uelzen, estação cuja ineficácia no escoamento de pessoas faz a Estação do Oriente parecer um paraíso na terra, consegui arranjar lugar junto a uma das portas que separam as carruagens. Com as malas a partilharem carinhos com a de todos os outros passageiros, eis que me deparo com um grupo de três simpáticos ogres que se sentaram mesmo à minha frente.
Dois homens de barrigas esféricas a fazerem inveja a qualquer grávida de trigémeos e uma outra criatura que suspeito que já tenha sido uma mulher.
Assim que se sentaram vai de sacar de uma bela garrafinha de plástico repleta de um belo e inebriante líquido. Depois de consumida a garrafa, cada qual se fez munir do seu six-pack de Astras de meio litro para acompanhar o resto da viagem. Gente prevenida é logo outra coisa, pensei. O tom de voz com que vociferavam faria corar um qualquer tuberculoso de Verdi. Daí a plenas demonstrações de simpatia para com os outros passageiros foi um passinho. A qualquer pessoa que esperasse que a porta se fechasse automaticamente, saíam uns piropos engraçados e intraduzíveis nesta nossa latina linguagem. Houve até um momento épico em que um deles ficou entalado na tal de porta automática quando a porta se fechou sobre o seu esférico a que alguns poderiam chamar de barriga.
Quando a viagem terminou pensei que talvez sido por causa destas e doutras que Cristo tinha decidido morrer numa sexta-feira.
Depois de uma Páscoa repleta de salsichas e schnapps lá regressei às aventuras de comboios e qual não é o meu espanto quando vejo o mesmo trio a subir o comboio e a sentar-se, sim, mesmo à minha frente.
Escusado será dizer que a viagem de regresso a Hamburgo foi um miminho e um abre-olhos para a realidade de que Cristo ressuscitou mas não quis ficar por cá.