quarta-feira, 3 de abril de 2013

Da beleza poética das viagens de comboio

Um dos sítios onde o germânico hábito de atropelar pessoas mais se faz notar é nas estações de comboio. A forma como estes amigáveis e civilizados portentos da natureza se empurram e passam à frente a fim de conseguir garantir um bom lugar sentado é qualquer coisa de inexplicável. Muitos serão até capazes de ver pequenos laivos poéticos semelhantes aos do rebentar da bomba atómica.
O bonito e singelo episódio que aqui vos vou relatar passou-se na sexta-feira santa.
Sendo feriado antes de fim de semana alargado, creio que se encontravam reunidas todas as condições para um momento de violência eterna capaz de figurar nos anais da história como o célebre caso da antiga ponte das barcas na nossa Invicta cidade do Porto.
Levado na loucura da Estação Central de Hamburgo, lá consegui encontrar lugar sentado, perante o olhar meio invejoso de meia dúzia de cidadãos que, com certeza, bem me desejariam crucificar apenas para sentirem um pouco mais intensamente o espírito da época.
Depois de ter trocado de comboio em Uelzen, estação cuja ineficácia no escoamento de pessoas faz a Estação do Oriente parecer um paraíso na terra, consegui arranjar lugar junto a uma das portas que separam as carruagens. Com as malas a partilharem carinhos com a de todos os outros passageiros, eis que me deparo com um grupo de três simpáticos ogres que se sentaram mesmo à minha frente.
Dois homens de barrigas esféricas a fazerem inveja a qualquer grávida de trigémeos e uma outra criatura que suspeito que já tenha sido uma mulher.
Assim que se sentaram vai de sacar de uma bela garrafinha de plástico repleta de um belo e inebriante líquido. Depois de consumida a garrafa, cada qual se fez munir do seu six-pack de Astras de meio litro para acompanhar o resto da viagem. Gente prevenida é logo outra coisa, pensei. O tom de voz com que vociferavam faria corar um qualquer tuberculoso de Verdi. Daí a plenas demonstrações de simpatia para com os outros passageiros foi um passinho. A qualquer pessoa que esperasse que a porta se fechasse automaticamente, saíam uns piropos engraçados e intraduzíveis nesta nossa latina linguagem. Houve até um momento épico em que um deles ficou entalado na tal de porta automática quando a porta se fechou sobre o seu esférico a que alguns poderiam chamar de barriga.
Quando a viagem terminou pensei que talvez sido por causa destas e doutras que Cristo tinha decidido morrer numa sexta-feira.
Depois de uma Páscoa repleta de salsichas e schnapps lá regressei às aventuras de comboios e qual não é o meu espanto quando vejo o mesmo trio a subir o comboio e a sentar-se, sim, mesmo à minha frente.
Escusado será dizer que a viagem de regresso a Hamburgo foi um miminho e um abre-olhos para a realidade de que Cristo ressuscitou mas não quis ficar por cá.

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