sexta-feira, 21 de março de 2014

Olha um poeta!

Nao acontece todos os dias.
Mas às vezes, lá calha.
Embora pudesse estar a falar sobre as probabilidades de se apanhar um dia pleno de sol em Hamburgo, falo antes desse extraordinário feito que às vezes aconteces nas nossas vidas e que é o de se conhecer um poeta. As imagens romanticas de um Pessoa a escrever de pé, de um Cesariny a chocar os clientes do Café Gelo ou de um Byron a ser espancado à porta do Teatro Nacional talvez já nao se adequem.
O Fabio distribui abracos e sorrisos por entre uma fé inabalável na poesia e na performance poética. Conheci-o entre caipirinhas e convidei-o para tomar café. Ele apareceu e fez isto:
https://www.youtube.com/watch?v=jMqYft1WVTM&list=UUk70IQ_7P2uYrXTyyfYFhDA
Em breve o poeta regressará com um trupe poético-perigosa para animar a noite lá no tasco, fazendo-me acreditar que a poesia ainda é possível:

poesia não é para ficar só na prateleira!
ela é pra ser devorada no jantar
e vomitada no banheiro
é para ser fornicada no sofá
e gozada no chão
ela é para ser lambida pelas bordas
depois de uma mordida...
é para toda e qualquer coisa que não seja o esquecimento...
ela também é para ser comprada,
embora muitos a tratam como escrava branca sem valor...
ela é para o meu vizinho e meu inimigo
é para minha puta e para minha mãe
ela é pro bispo e para o pecador
ela é para quem a dá valor e não a paga
a poesia é para todos os fins, até para limpar a bunda...
ela é imaginação e não é nada!

quinta-feira, 13 de março de 2014

Retornado por 10 dias

Regressar a Portugal.
Regressar a Portugal é como regressar a um corpo que se conhece. A um vinho que sempre se bebeu e que nunca desiludiu. Talvez mesmo reler um poema que sempre mexeu connosco e que de forma misteriosa continua a faze-lo sem que consigamos nunca explicar bem o porque de tal coisa.
Ter regressado a Portugal foi tudo isso e foi mais.
Foi Clara, André, Graca, Liliana, Joana, Eduardo, Toni, Zé, Néné, Carlos, Vanessa, Luís, Gustavo, Cecília, Carla, Paulo, Tiago, Rodrigo, Carla, Susana, Ana, Mafalda, Diogo, Dora, Goncalo, Alves, Nuno, Célia, Ines, Elisa.
Nomes que escondem pessoas que me abracaram e com quem partilhei minutos escassos e que agudizaram umas saudades quase impossíveis de esconder. Saudades de outras pessoas de quem nao conheco os nomes mas que se cruzaram comigo naquele surrealismo nacional que em tudo supera o realismo mágico sul-americano.
Falo do senhor do snack-bar Guedes no Porto que depois de refilar durante dois minutos em bom refilar cede a um desejo meu como crianca que aceita um doce, do conhecer do enólogo do vinho que bebia num restaurante aparentemente perdido em Tabuaco, de uma senhora adorável que me pediu adivinhas atrás de adivinhas com um sorriso que nao tenho palavras para descrever e que deixo ecoar cá dentro na esperanca de ainda um dia conseguir sorrir assim, da detalhada descricao sobre as qualidades divinas das morcelas da Guarda num restaurante vazio, do reencontrar do Yes we can em Sao Pedro do Rio Seco e do seu inevitável Toni, das curvas da serra da Gardunha, o estar a ligar à Dora no Oriente e ve-la aparecer à minha frente, dos beijos de um foliao travestado em pleno Sereia ali na esquina da casa da minha mae em Santarem, entre outras pequenas coisas que acho que só em Portugal sao possíveis.
Mas mais que o surrealismo, trago cravada a cara da minha mae ao ver-me aparecer de surpresa para almocar. A perspicácia literária do André que nao hesitou em me deixar um livro do Borges na casa de banho em curta pernoitada com muito vinho e ainda mais literatura. A alegria indisfarcável do calor africano da Elisa e o abraco do Alves que deixou a minha cara marcada numa cabecada fenomenal. O regressar a Sao Pedro e ser convidado para almocar e ver que uma fotografia onde apareco figura na sala juntamente com a dos mais próximos familiares. O saber que em cada abraco senti os dedos cravarem-se nas costas como se nunca de lá tivessem saído. O  saber que há reencontros que continuaram a ter o sabor do normal e que isso é um luxo e que talvez haja alemaes dispostos a pagar por esse pedaco de humanidade.
E depois disto tudo regressar a casa, Hamburgo, com o coracao cheio e uma forca enorme de continuar a viver apenas para poder continuar a reencontrar e a viver tudo isto e muito mais.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

3 curtas

Eis que no espaço de um único mês a Alemanha, bravamente através dos seus cidadãos, conseguiu revelar que é possível ser um local onde as pessoas podem viver e até sorrir (nao sempre, entenda-se!). Três foram os projectos que vieram ao meu encontro deixando-me tudo menos indiferente.
O primeiro surgiu de um dos vizinhos que afirmou estar a tentar viver um mes inteiro sem comprar nada que tenha plástico. Seduzido pela ideia nao hesitei em partilhá-la no facebook recebendo muita e geral apreciacao. Contudo, duvido seriamente que alguém tenha seguido o meu desafio pois eu próprio desisti no segundo dia e nao recebi mais nenhum feedback de ninguém. Ou entao encontram-se em debilitado estado de saude depois de nao terem conseguido comprar alimentos suficientes para garantir o mais básico nível de sobrevivencia. O vizinho, esse, confessou-me passadas duas semanas que estava a ter problemas para conseguir encontrar papel higiénico. Claro está que estive para lhe cantarolar aquela versao da nossa infancia "nao faz mal, limpa-se ao jornal", mas acabei por nao o fazer pois a beleza poética da coisa perder-se-ia na traducao.
O segundo projecto que me impressionou foi o da Igreja do Silencio. Um pouco à semelhanca do que acontece em Taizé, existe em Hamboich uma igreja praticamente nua onde reina um silencio contangiante. Ao contrário das outras igrejas esta encontra-se aberta num horário razoável e é uma fuga excelente depois de se sobreviver às passadeiras de uma das mais movimentadas ruas de Altona.
O terceiro projecto vem da Zentralbibliothek, já previamente elogiada neste espaco. Ora bem, tendo os referidos senhores uma série de livros extra e que já nao encontram espaco dentro das paredes do edifício, qual a solucao? Vende-los a 1€, pois claro. Aqui os livros nao se abatem, vendem-se. Entre Murakami, Saramago ou Le Clézio foram 19 os que comprei. Preco? 15€, mostrando que esta gente das humanidades nao se dá bem com matemática, mas até se safam com a alegria de viver.
   

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Ah, da vida

... hemos perdido en cien anos las mejores virtudes humanas del siglo XIX: el idealismo febril y la prioridad de los sentimientos: el susto del amor. García Márquez

Ora bem, foi preciso chegar aos quase 32 anos para o García Márquez me dizer isto e matar, de uma vez por todas as minhas ténues ilusões em relação à humanidade. Claro está que o facto de isto ter  sido escrito e publicamente proferido em 1985 nada tem que ver com este atraso na transmissão da mensagem, pois acredito piamente que tudo o que de bom se escreve no mundo é feito única e exclusivamente para mim. Assim sendo, acabo de substituir o Maradona no lugar de pessoa com o maior ego à face da terra.

Seja como for, não deixa de me chocar saber da perda destas virtudes. Surpreendente? Não. Triste só o reconhecer agora e através da leitura de uma oralidade? Talvez.

Ao longo dos anos desde que comecei a trabalhar e em que fui obrigado a aperceber-me de que há um mundo real onde as pessoas têm que ganhar dinheiro para continuarem a sobreviver, fui-me dando conta de como as minhas ilusões se foram desvanecendo à medida que os projectos iam amadurecendo e isso ia criando uma certa amargura que espero não ser irremediável ou irreversível.

Da biblioteca o cepticismo intelectual em relação a muitas das pessoas que trabalham nas nossas bilbiotecas e outros órgãos culturais assim como uma certa bílis em relação aos mecanismo que a (des)função pública cria para se anular a si mesma.

Do hostel a crueldade impiedosa das pessoas quando têm a liberdade para criticar e avaliar o trabalho alheio.

Do mundo dos contos uma certa desconfiança de parcerias depois de ter sido roubado financeira e intelectualmente por quem não tem escrúpulos enquanto narra a possibilidade de um mundo novo.

De Portugal... será mesmo preciso dizer?

Do tasco em Hamburgo da competição desenfreada e desleal  promovida pelo sistema germânico depois de ter tido parte do menú copiado com leve alteração de preços por parte da padaria da esquina.

É verdade que tudo isto são coisas que nos ajudam a crescer, da mesma forma que tenho a certeza que também eu já terei sido causador de amarguras alheias (ou se calhar estou-me a ter demasiado em conta...) .

Mas sei que no final, todos estes mundos me trouxeram igualmente alegrias inimagináveis mantendo em mim vivo um certo idealismo (com tudo o que de naïve ele acarreta) e, sobretudo, os sustos e sobressaltos que o amor nos leva a atravessar.

Para o bem e para o mal.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Poema do Pacheco

Lá fora
neva.
De branco as ruas transportam
quem passa
esquecendo-se sempre da memória
dos que já passaram
em dias
de sem neve.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ser português para o melhor e, claramente, para o pior

Apesar do tasco não ter qualquer referência a Portugal excepto o óbvio galão ou o menos óbvio mazagran no menú, as pessoas lá vão descobrindo que sou português. Regra geral essa maravilhosa revelação surge depois de me perguntarem embevecidos se sou francês e de lançarem um desapontado "ah" quando lhes revelo que sou, afinal, português.
Contudo houve uma mais subtil revelação ao ser identificado com a lusa nacionalidade depois da descoberta de uma frase do Mia que para ali tenho a jeito de prescrição médica onde se revela que o mundo é aquilo que acontece e não aquilo que é.  Espanto! Maior ainda sendo que a descoberta veio de uma germânica criatura.
Mas o grande espanto (peço humildemente perdão, mas acordei apaixonado por esta palavra) é mesmo quando me surgem portugueses porta adentro vociferando em bom tom sobre a minha possível lusitanidade. Nunca escondendo um certo desconforto e surpresa, lá vou respondendo timidamente às questões que me vão colocando. Sim, sou scalabita. Estou em Hamburgo há coisa de um ano. Pois, o tempo realmente é um pouco assim que para o merdoso.
No outro dia entraram porta dentro um casal dos seus quase quarenta anos a perguntarem se era português. Agradecendo ao divino o facto de estar o tasco vazio respondi que sim. O que se seguiu foi belo e digno de registo:
" Pois, o Pacheco tinha-me dito que isto aqui era um café português, mas como não vi bandeira nenhuma lá fora, pensei que se tinha enganado. Além do mais com estas letras turcas (referindo-se à reprodução da assinatura do Kafka que foram desrespeitosamente aproveitadas para fazer o logo do tasco) e o caralho pensei mesmo que não era. Porque é não vende Natas? Eu se fosse a si punha aqui uma camisola da selecção nacional aqui mesmo na janela para toda a gente ver. Ou vai-me dizer que não é português? Eu aqui não mando, mas se fosse a si era isso mesmo que fazia. Toma! E mudava o nome para uma coisa portuguesa. E vende vinho verde? O quê? Quinta da Aveleda? Que é lá isso? Casal Garcia é que é bom e que os alemães conhecem! E sopa de feijão, faz? E não me diga que não vai aqui passar os jogos da selecção quando for o mundial! Mas olhe que tem que arranjar aí uma televisão como deve ser! Essa aí é piquena! E porque não está a ouvir música portuguesa? Olhe que assim acho que não vai longe!"
Quando finalmente abandonaram aqui o tasco, ponderei seriamente em tirar o galão do menú e começar a vender apenas Riesling e outras especialidades vinícolas alemãs. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ritmo de aprendizagem

"I don't do it for the marks, (...) I do it for the enjoyment." Alice Munro

Boa, boa, pensei! Aqui está uma citação nobelizada a provar que é possível estudar-se apenas pelo prazer de se saber mais. Mesmo aquilo que me vinha a calhar para introduzir numa discussão sobre o ritmo germânico de vida que, mais que qualquer outra coisa, é um ritmo financeiro.
Optimizar é, por definição, uma das palavras que mais tenho ouvido e à qual maior referência estas germânicas gentes fazem. Desde a mais tenra idade que  são incitados a ser melhores do que o semelhante de forma a conseguirem vingar numa sociedade que lentamente se tem vindo a tornar implacável.
Tudo bem até um certo ponto. Acredito piamente que há sempre espaço para a aprendizagem contínua e que essa mesma aprendizagem nos conduzirá a melhores e mais civilizados tempos. Contudo, creio que não é isso que tem vindo a acontecer. Este ritmo e competitividade visam, no meu parecer míope, causar o efeito contrário acabando sempre inevitavelmente por se traduzir nas mais pequenas coisas da vida como o atropelar para se entrar no autocarro ou o passar à frente de velhotas com dificuldades na fila do supermercado.
A palavra prazer tem vindo lentamente a ser retirada ou banalizada como algo obsoleto e que não se encaixa numa vida optimizada. Como diria uma contadora de estórias que por aqui tem vindo a passar: os alemães típicos calculam quatro horas de tempo livre por dia. Sendo um número tão reduzido de tempo livre, não hesitam em programar uma hora para actividade física, uma para aprender algo mais que os poderá fazer destacar em relação aos colegas de trabalho, uma para jantar e uma outra para se divertirem. Mas apenas uma. Com início e fim bem demarcados. E é bom que seja bem aproveitada.
Na louca correria por se conseguir cada vez mais sinto que estamos terrivelmente a tornar-nos cada vez menos pessoas.