domingo, 23 de fevereiro de 2014

3 curtas

Eis que no espaço de um único mês a Alemanha, bravamente através dos seus cidadãos, conseguiu revelar que é possível ser um local onde as pessoas podem viver e até sorrir (nao sempre, entenda-se!). Três foram os projectos que vieram ao meu encontro deixando-me tudo menos indiferente.
O primeiro surgiu de um dos vizinhos que afirmou estar a tentar viver um mes inteiro sem comprar nada que tenha plástico. Seduzido pela ideia nao hesitei em partilhá-la no facebook recebendo muita e geral apreciacao. Contudo, duvido seriamente que alguém tenha seguido o meu desafio pois eu próprio desisti no segundo dia e nao recebi mais nenhum feedback de ninguém. Ou entao encontram-se em debilitado estado de saude depois de nao terem conseguido comprar alimentos suficientes para garantir o mais básico nível de sobrevivencia. O vizinho, esse, confessou-me passadas duas semanas que estava a ter problemas para conseguir encontrar papel higiénico. Claro está que estive para lhe cantarolar aquela versao da nossa infancia "nao faz mal, limpa-se ao jornal", mas acabei por nao o fazer pois a beleza poética da coisa perder-se-ia na traducao.
O segundo projecto que me impressionou foi o da Igreja do Silencio. Um pouco à semelhanca do que acontece em Taizé, existe em Hamboich uma igreja praticamente nua onde reina um silencio contangiante. Ao contrário das outras igrejas esta encontra-se aberta num horário razoável e é uma fuga excelente depois de se sobreviver às passadeiras de uma das mais movimentadas ruas de Altona.
O terceiro projecto vem da Zentralbibliothek, já previamente elogiada neste espaco. Ora bem, tendo os referidos senhores uma série de livros extra e que já nao encontram espaco dentro das paredes do edifício, qual a solucao? Vende-los a 1€, pois claro. Aqui os livros nao se abatem, vendem-se. Entre Murakami, Saramago ou Le Clézio foram 19 os que comprei. Preco? 15€, mostrando que esta gente das humanidades nao se dá bem com matemática, mas até se safam com a alegria de viver.
   

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Ah, da vida

... hemos perdido en cien anos las mejores virtudes humanas del siglo XIX: el idealismo febril y la prioridad de los sentimientos: el susto del amor. García Márquez

Ora bem, foi preciso chegar aos quase 32 anos para o García Márquez me dizer isto e matar, de uma vez por todas as minhas ténues ilusões em relação à humanidade. Claro está que o facto de isto ter  sido escrito e publicamente proferido em 1985 nada tem que ver com este atraso na transmissão da mensagem, pois acredito piamente que tudo o que de bom se escreve no mundo é feito única e exclusivamente para mim. Assim sendo, acabo de substituir o Maradona no lugar de pessoa com o maior ego à face da terra.

Seja como for, não deixa de me chocar saber da perda destas virtudes. Surpreendente? Não. Triste só o reconhecer agora e através da leitura de uma oralidade? Talvez.

Ao longo dos anos desde que comecei a trabalhar e em que fui obrigado a aperceber-me de que há um mundo real onde as pessoas têm que ganhar dinheiro para continuarem a sobreviver, fui-me dando conta de como as minhas ilusões se foram desvanecendo à medida que os projectos iam amadurecendo e isso ia criando uma certa amargura que espero não ser irremediável ou irreversível.

Da biblioteca o cepticismo intelectual em relação a muitas das pessoas que trabalham nas nossas bilbiotecas e outros órgãos culturais assim como uma certa bílis em relação aos mecanismo que a (des)função pública cria para se anular a si mesma.

Do hostel a crueldade impiedosa das pessoas quando têm a liberdade para criticar e avaliar o trabalho alheio.

Do mundo dos contos uma certa desconfiança de parcerias depois de ter sido roubado financeira e intelectualmente por quem não tem escrúpulos enquanto narra a possibilidade de um mundo novo.

De Portugal... será mesmo preciso dizer?

Do tasco em Hamburgo da competição desenfreada e desleal  promovida pelo sistema germânico depois de ter tido parte do menú copiado com leve alteração de preços por parte da padaria da esquina.

É verdade que tudo isto são coisas que nos ajudam a crescer, da mesma forma que tenho a certeza que também eu já terei sido causador de amarguras alheias (ou se calhar estou-me a ter demasiado em conta...) .

Mas sei que no final, todos estes mundos me trouxeram igualmente alegrias inimagináveis mantendo em mim vivo um certo idealismo (com tudo o que de naïve ele acarreta) e, sobretudo, os sustos e sobressaltos que o amor nos leva a atravessar.

Para o bem e para o mal.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Poema do Pacheco

Lá fora
neva.
De branco as ruas transportam
quem passa
esquecendo-se sempre da memória
dos que já passaram
em dias
de sem neve.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ser português para o melhor e, claramente, para o pior

Apesar do tasco não ter qualquer referência a Portugal excepto o óbvio galão ou o menos óbvio mazagran no menú, as pessoas lá vão descobrindo que sou português. Regra geral essa maravilhosa revelação surge depois de me perguntarem embevecidos se sou francês e de lançarem um desapontado "ah" quando lhes revelo que sou, afinal, português.
Contudo houve uma mais subtil revelação ao ser identificado com a lusa nacionalidade depois da descoberta de uma frase do Mia que para ali tenho a jeito de prescrição médica onde se revela que o mundo é aquilo que acontece e não aquilo que é.  Espanto! Maior ainda sendo que a descoberta veio de uma germânica criatura.
Mas o grande espanto (peço humildemente perdão, mas acordei apaixonado por esta palavra) é mesmo quando me surgem portugueses porta adentro vociferando em bom tom sobre a minha possível lusitanidade. Nunca escondendo um certo desconforto e surpresa, lá vou respondendo timidamente às questões que me vão colocando. Sim, sou scalabita. Estou em Hamburgo há coisa de um ano. Pois, o tempo realmente é um pouco assim que para o merdoso.
No outro dia entraram porta dentro um casal dos seus quase quarenta anos a perguntarem se era português. Agradecendo ao divino o facto de estar o tasco vazio respondi que sim. O que se seguiu foi belo e digno de registo:
" Pois, o Pacheco tinha-me dito que isto aqui era um café português, mas como não vi bandeira nenhuma lá fora, pensei que se tinha enganado. Além do mais com estas letras turcas (referindo-se à reprodução da assinatura do Kafka que foram desrespeitosamente aproveitadas para fazer o logo do tasco) e o caralho pensei mesmo que não era. Porque é não vende Natas? Eu se fosse a si punha aqui uma camisola da selecção nacional aqui mesmo na janela para toda a gente ver. Ou vai-me dizer que não é português? Eu aqui não mando, mas se fosse a si era isso mesmo que fazia. Toma! E mudava o nome para uma coisa portuguesa. E vende vinho verde? O quê? Quinta da Aveleda? Que é lá isso? Casal Garcia é que é bom e que os alemães conhecem! E sopa de feijão, faz? E não me diga que não vai aqui passar os jogos da selecção quando for o mundial! Mas olhe que tem que arranjar aí uma televisão como deve ser! Essa aí é piquena! E porque não está a ouvir música portuguesa? Olhe que assim acho que não vai longe!"
Quando finalmente abandonaram aqui o tasco, ponderei seriamente em tirar o galão do menú e começar a vender apenas Riesling e outras especialidades vinícolas alemãs. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ritmo de aprendizagem

"I don't do it for the marks, (...) I do it for the enjoyment." Alice Munro

Boa, boa, pensei! Aqui está uma citação nobelizada a provar que é possível estudar-se apenas pelo prazer de se saber mais. Mesmo aquilo que me vinha a calhar para introduzir numa discussão sobre o ritmo germânico de vida que, mais que qualquer outra coisa, é um ritmo financeiro.
Optimizar é, por definição, uma das palavras que mais tenho ouvido e à qual maior referência estas germânicas gentes fazem. Desde a mais tenra idade que  são incitados a ser melhores do que o semelhante de forma a conseguirem vingar numa sociedade que lentamente se tem vindo a tornar implacável.
Tudo bem até um certo ponto. Acredito piamente que há sempre espaço para a aprendizagem contínua e que essa mesma aprendizagem nos conduzirá a melhores e mais civilizados tempos. Contudo, creio que não é isso que tem vindo a acontecer. Este ritmo e competitividade visam, no meu parecer míope, causar o efeito contrário acabando sempre inevitavelmente por se traduzir nas mais pequenas coisas da vida como o atropelar para se entrar no autocarro ou o passar à frente de velhotas com dificuldades na fila do supermercado.
A palavra prazer tem vindo lentamente a ser retirada ou banalizada como algo obsoleto e que não se encaixa numa vida optimizada. Como diria uma contadora de estórias que por aqui tem vindo a passar: os alemães típicos calculam quatro horas de tempo livre por dia. Sendo um número tão reduzido de tempo livre, não hesitam em programar uma hora para actividade física, uma para aprender algo mais que os poderá fazer destacar em relação aos colegas de trabalho, uma para jantar e uma outra para se divertirem. Mas apenas uma. Com início e fim bem demarcados. E é bom que seja bem aproveitada.
Na louca correria por se conseguir cada vez mais sinto que estamos terrivelmente a tornar-nos cada vez menos pessoas.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

As ilhas alemãs

Em conversa com o mais visitador dos vizinhos o termo "ilhas" acabou por ser cunhado para definir a nova geração de alemães.
Como qualquer boa sociedade desenvolvida, o culto do eu e do individualismo foi elevado a um alto nível de consumo onde cada um sabe perfeitamente o que quer, evitando-se ao máximo o humano contacto de se ser aconselhado (e outros).
A possibilidade de se ter exactamente aquilo que se quer entregue em casa e na maioria dos casos sem custos adicionados, faz com que haja quase tantos serviços de entrega de comida ao domicílio quanto adeptos do Nacional da Madeira. A empresa de entregas DHL tem uma carrinha a tempo inteiro apenas para a rua onde se encontra o tasco ( a rua terá, talvez, a extensão da Avenida da Liberdade em Lisboa), para além das outras que fazem serviços "extraordinários". Claro está que há mais uma boa meia dúzia de outras empresas que dia após dia percorrem a rua de pacotes na mão. A fim de manter o nível competitivo a que todos ambicionamos e que fazem da Alemanha uma das mais fortes economias mundiais, estes funcionários não têm direito a salário fixo, mas a uma comissão por cada pacote entregue.
Durante um tempo aceitei receber os pacotes das pessoas que não estavam em casa aqui no tasco. A média diária era de cerca de 10 pacotes e as pessoas que os vinham levantar costumavam-me tratar como servente e não como um simpático vizinho que aceitou o pacote evitando-lhes a chatice de fazerem quase dois quilómetros para o irem levantar.  Escusado será dizer que já não aceito mais encomendas aqui.
A filha do supracitado vizinho abriu uma pequena livraria num dos mais fascinantes museus de Hamburgo e viu-se obrigada a fechar a partir do momento em que se recusou começar a vender pela internet. Na realidade, a capacidade dos alemães se deixarem surpreender ao entrarem numa livraria/biblioteca e deixar que um livro lhes surja à frente como algo apetecível e inesperado encontra-se reduzida a uns meros resistentes, quase todos da velha guarda.
Confesso que no outro dia, e pela primeira vez desde que aqui estou, entrei na biblioteca directamente ao local onde estava uma versão espanhola de O Cemitério de Praga do Eco. Já o tinha visto na minha anterior visita, mas um certo bom senso da minha capacidade leitora vs tempo fez com que adiasse a sua leitura por uma semana. Decidido avancei sem temor e ao chegar ao local que tinha mentalmente definido na minha cabeça dei com um espaço vazio. O desnorteio que se seguiu foi tal que cheguei a requisitar Alice Munro em espanhol, mesmo havendo uma versão em inglês disponível. Ri-me de mim mesmo, respirei fundo e deixei-me vaguear de novo pelas prateleiras recolhendo aquilo que me foi caindo à frente e me pareceu maduro, assim evitando a minha germanização.
Na biblioteca da Universidade não há contacto directo com os livros sendo que estes têm que ser pré-requisitados e levantados num prazo de oito dias ou assim.
Antes de terminar o café, o vizinho repetiu profeticamente o seu temor de que nos venhamos a tornar numa sociedade de ilhas onde cada um sabe cada vez mais o que quer, sabendo assim cada vez menos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Da universalidade da arte

Nos tempos em que o Botequim ficava mesmo ali à esquina da minha casa, lembro-me de por diversas vezes me ter apiedado dos novos donos pois toda a dinâmica cultural do sítio parecia sempre ser um convite inequívoco à exposição do brilhantismo intelectual de toda uma panóplia de loucos que sempre apareciam a fim de dominar as atenções.
Claro está que a memória da falecida Natália Correia também aparecia e o nome dela era evocado mais do que o de Cristo no decorrer de uma missa. Entre os loucos havia poetas, declamadores natos, pintores, compositores e outros artistas que sempre se incluíam no grupo dos sem definição.
Entre todas as pragas que podem atormentar um negócio esta poderá ser uma das piores. O limite entre a simpatia, a paciência e o bem estar social dos restantes clientes é algo, a meu ver, ténue e difícil de definir.
Tendo agora um tasco onde sessões de contos, leituras, tertúlias literárias, música ao vivo, exposições e toda uma série de actividades são possíveis, claro está que também já por cá apareceram os loucos.Chegam como quem não quer a coisa e ao fim de trinta segundos afirmam que são génios em potência  Desde uma multi-artista plural (se bem percebi o que ela disse entre gargalhadas de puro delírio) ao escritor deprimido depois da primeira revisão que lhe fizeram à escrita (e portanto sem nenhum livro publicado) também por aqui há uma variada oferta de loucos a julgarem que são artistas (não confundir com artistas loucos que é lugar comum completamente diferente).
Que bom é saber que isto a artística loucura é algo de universal que une os povos tanto ou mais do que as uniões económicas e/ou monetárias.