terça-feira, 27 de maio de 2014

Artur, porque sim



Vais beber café com o pai de uma amiga? Ela é boa?
Confesso que temi perante o convite.  Será que me iria ser impingida uma seita religiosa? Uma oportunidade de negócio irrecusável do qual ainda hoje estaria a pagar as dívidas relacionadas com o investimento inicial, já para nao falar dos subsequentes problemas relacionados com a PJ? Uma ameaca física relacionada com uma falsa interpretacao de um gesto menos púdico com a filha dele também pairou no horizonte.
Do encontro num café perto da faculdade onde fingi estudar trouxe conceitos de Fair Trade, agricultura biológica e um livro sobre o qual me lancou muitas perguntas.  The hitchhiker's guide to the galaxy foi o eleito e usado como introducao a um outro mundo (s?) e tema de futuras conversas. Afinal o pai da amiga nao me queria vender nada. Queria apenas e simplesmente falar. Senti-me tentado a pedir-lhe desculpa por tamanhas bizarrias terem passado sequer pela minha cabeca. Nao pedi.
Mas nao por falta de oportunidade. Trocámos emails, referencias, reencontrámo-nos, conversámos sobre a possível existencia de mundos paralelos.  Sobre os malifícios de viver. Sobre música. Sobre livros que nunca tinha lido. Sobre a possibilidade da realidade ser irreal e vice-versa.  Foram dez anos inconstantes como só os anos o sabem ser. Mas foram dez anos onde cada encontro se fazia na redescoberta de uma cumplicidade construída.
O último encontro lembro-me bem, como soe acontecer nestas ocasioes.  O Artur, que entretanto já tinha deixado de ser o pai da amiga para ter direito a nome e identidade, apareceu no hostel, jantou, confratermizou e sem conseguir esconder as fraquezas incontroláveis da doenca que o invadiu, pediu-me desculpa.
Foram estas as últimas palavras que ouvi da boca dele. Com o aniversário que se seguiu cumpriu-se um círculo perfeito, como só acontece com aqueles para quem o irreal é, afinal, realidade.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Recomendo? Talvez... nao.

Situacao:
Um cliente habitual entra no tasco e confiante de que o conheco, recomendo-lhe um livro de banda desenhada onde a personagem principal tem encontros com músicos épicos como o Cohen, o Bowie, o Lennon, etc, etc. Perante o meu entusiasmo ele olha para a capa do livro de relance, diz que aquilo é o Lennon na capa e vira a cara. Passado tres minutos de abandonar os entornos oficiais dos meus dias regressa com um outro livro de banda desenhada e deixa-o no balcao, aconselhando-me a leitura.

Situacao:
Na estacao do Oriente encontro a Dora Guedes que depois do abraco normal de quem encontra um emigrante assim como que por acaso abre a mala e de lá saca um livro que nao recomendei pessoalmente mas que se lembra de me ver ler com considerável entusiasmo. Como consequencia surgiu este texto: http://avelhapagina.blogspot.de/2014/04/da-dignidade-humana.html (que, diga-se, me encheu de orgulho)

Desde a minha entediante adolescencia que senti necessidade de partilhar de forma entusiasmada com as pessoas de quem gostava leituras e música. Impus livros. Impingi álbuns. Desde esses mesmos anos fui aprendendo que muitas das pessoas que receberam livros da minha mao o fizeram por mera cortesia. Os álbuns talvez tenham sido copiados mas sem garantias de que alguma vez tenham sido ouvidos da mesma forma entusiasta com que os tinha imposto. Os livros, quase nenhuns lidos. Como sei?
Ao longo do tempo fui-me apercebendo de que as pessoas se comecaram a esquivar a comentar o que tinham achado das minhas recomendacoes/imposicoes. Que sempre que recomendava alguma destas duas coisas manifestavam um certo desconforto por entre a tal de cortesia. Que tudo isto me conduziu a uma certa desconfianca em relacao às generosas recomendacoes de outras pessoas. Que com tudo isto amadureci reconhecendo que o processo de leitura é algo de plenamente pessoal assim como a audicao de um bom álbum. 
Implica entrega. Dedicacao. Devocao, até, como se de uma relacao amorosa se tratasse. E nestas coisas nao há como aceitar a intromissao de estranhos. Como um amor platónico, comecei a esperar que os estranhos falassem apaixonadamente de alguma coisa e, em segredo, logo iria procurar.
Uma recomendacao directa implica um compromisso que nem sempre estamos dispostos a assumir.
Contudo este meu translado às andancas alemas fez um reset em todas as minhas prévias aprendizagens no que a isto respeito diz (aqui está uma bela construcao alema onde o verbo salta para o fim por causa da construcao do conjuntivo). Por um lado o completo desconhecimento do que ler ou ouvir em alemao. Por outro o afastamento com o que de bom se vai fazendo nas terras que deixei.
Assim se voltam a abrir as minhas portas para recomendacoes, pois às vezes o mundo me parece ser infinitamente... infinito. E belo!

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Porque há coisas para as quais é complicado arranjar títulos...

Microcosmos:

Ao sentir a bicicleta a escapar-me em dia de chuva por estas terras de Hamburgo, saltei de forma a causar uma certa inveja em todo uma geração de ginastas soviéticos, assim salvando a minha pele de um contacto mais intenso com o pavimento municipal. Contudo, não consegui evitar que a bicicleta fosse a resvalar indo roçar as calças de uma senhora de indumentária empresarial que, como está bom de ver, não se dignou a desviar evitando um possível conflito. Perante o horror de ver a perna das calças levemente tocada por um bocado de lama, a senhora não se escusou a lançar um "ehhhh" de horror e nojo.
Humildemente pedi desculpa afirmando honestamente que a culpa não era minha.
Um "pffff" de nojo existencial saiu dos seus lábios.
Neste momento confesso que a minha latinidade se fez sentir nas veias, proferi um bom par de asneiras em tradicional vernáculo lusitano, e disse-lhe em bom alemão que "esta gente não é normal".
Pegando na bicicleta, prossegui o meu caminho libertando nas pernas todas as minhas frustrações e raivas sociais.

Macrocosmos:

O presidente de uma junta de freguesia schiki-micki (como se diria nestas bandas) de Hamburgo, possivelmente comparável à lisboeta Lapa, anunciou publicamente que iria reabilitar um edifício devoluto a fim de poder receber refugiados sírios.
A opinião dos moradores do bairro logo se fez sentir num conjunto de entrevistas à televisão onde anunciaram que isso não podia ser, pois que seria dos pobres refugiados que se iriam sentir tão mal com as aberrantes diferenças sociais. E onde poderiam eles ir às compras? Ali é tudo razoavelmente mais caro. Talvez Hamburgo tenha outros bairros mais periféricos e baratos para onde os possam enviar. Até pode ser que lá haja outra gente como eles. Que insensato so senhor presidente da junta, proclamaram.
O grito de "esta gente não é normal" voltou a ecoar dentro de mim....

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Poema do Pacheco

Sem que percebasque
todas estas palavras
por ti escritas foram
sigo manuseando-las como
quem carimba passaportes
de incontroláveis vontades

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Dos bons pulmoes desta gente

Nao estava nem há uma semana em Hamburgo quando surgiu o primeiro grito: Das ist rot!!!*1
Uma mae com uma crianca num carrinho nao hesitou em gritar de forma desalmada alertando-me para o facto de ter passado um sinal vermelho numa rua deserta. Realmente terei agido mal, providenciando um mau exemplo para um futuro cidadao que, num futuro mais ou menos distante, nao passará sinais vermelhos, mas que se sentirá no direito de gritar a todos os que infrigirem este género de leis.
Que pitoresco, pensei.
Pensei igualmente em munir-me de sarcasmo e reatravessar a rua, explicando à senhora que sou um crónico daltónico ou que estava apenas absorto na estrutura decassilábica dos Lusíadas (assim mesmo sem respeitar o título, porque uma vez que sou desrespeitador, que o seja de corpo inteiro) nao me apercebendo, portanto, da vermelhice do sinal.
Passado um ano, o pitoresco repetiu-se mais algumas vezes, atingindo o auge num percurso de bicicleta em que seguia sem luzes. Depois de ter passado cautelosamente numa passadeira, vi-me perseguido por um carismático automobilista que gritou a bons pulmoes que eu era um atrasado mental, arrogante de merda e outros vitupérios que, a bem da minha sanidade, nao percebi. Aconselhado a descer da bicicleta vi o senhor ainda a passar para o lugar do morto, ameacando sair do carro. Num momento pensei que tinha uma garrafa de vinho na mochila e que o meu amor ao conteúdo de um Serrado branco bem que se poderia esvanecer perante uma ameaca mais física.
O nosso amigo e herói desta crónica viria, eventualmente, a cansar-se das ofensas consecutivas, fazendo uma manobra perigosa retornando ao seu caminho que em nada coincidia com o meu.
Agradeco-lhe do fundo do coracao ter partilhado comigo a sua preocupacao com a minha saúde e com o bem-estar da circulacao rodoviária.
Quando cheguei a casa, recorri por breves instantes a minha vida e tentei-me lembrar de quantas pessoas me gritaram em Portugal nos 30 anos que aí vivi. E lembrei-me de uma. Com aparentes problemas mentais numa aldeia para a zona de Tomar. Afinal, estou como que em casa quando me gritam na rua, pensei. Mais do que em casa, até.
Com aquele sorriso que nos dá o conforto de estar no conforto da casa, abri a garrafa de Serrado e preparei-me para mais um dia, já com luzes na bicicleta.





*1 Está vermelho!!!

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A jeito de Haiku

even though my
lips never touched yours
birds keep on singing on the trees above

Khayam Xantarimuri

sexta-feira, 21 de março de 2014

Olha um poeta!

Nao acontece todos os dias.
Mas às vezes, lá calha.
Embora pudesse estar a falar sobre as probabilidades de se apanhar um dia pleno de sol em Hamburgo, falo antes desse extraordinário feito que às vezes aconteces nas nossas vidas e que é o de se conhecer um poeta. As imagens romanticas de um Pessoa a escrever de pé, de um Cesariny a chocar os clientes do Café Gelo ou de um Byron a ser espancado à porta do Teatro Nacional talvez já nao se adequem.
O Fabio distribui abracos e sorrisos por entre uma fé inabalável na poesia e na performance poética. Conheci-o entre caipirinhas e convidei-o para tomar café. Ele apareceu e fez isto:
https://www.youtube.com/watch?v=jMqYft1WVTM&list=UUk70IQ_7P2uYrXTyyfYFhDA
Em breve o poeta regressará com um trupe poético-perigosa para animar a noite lá no tasco, fazendo-me acreditar que a poesia ainda é possível:

poesia não é para ficar só na prateleira!
ela é pra ser devorada no jantar
e vomitada no banheiro
é para ser fornicada no sofá
e gozada no chão
ela é para ser lambida pelas bordas
depois de uma mordida...
é para toda e qualquer coisa que não seja o esquecimento...
ela também é para ser comprada,
embora muitos a tratam como escrava branca sem valor...
ela é para o meu vizinho e meu inimigo
é para minha puta e para minha mãe
ela é pro bispo e para o pecador
ela é para quem a dá valor e não a paga
a poesia é para todos os fins, até para limpar a bunda...
ela é imaginação e não é nada!