quinta-feira, 10 de abril de 2014

Dos bons pulmoes desta gente

Nao estava nem há uma semana em Hamburgo quando surgiu o primeiro grito: Das ist rot!!!*1
Uma mae com uma crianca num carrinho nao hesitou em gritar de forma desalmada alertando-me para o facto de ter passado um sinal vermelho numa rua deserta. Realmente terei agido mal, providenciando um mau exemplo para um futuro cidadao que, num futuro mais ou menos distante, nao passará sinais vermelhos, mas que se sentirá no direito de gritar a todos os que infrigirem este género de leis.
Que pitoresco, pensei.
Pensei igualmente em munir-me de sarcasmo e reatravessar a rua, explicando à senhora que sou um crónico daltónico ou que estava apenas absorto na estrutura decassilábica dos Lusíadas (assim mesmo sem respeitar o título, porque uma vez que sou desrespeitador, que o seja de corpo inteiro) nao me apercebendo, portanto, da vermelhice do sinal.
Passado um ano, o pitoresco repetiu-se mais algumas vezes, atingindo o auge num percurso de bicicleta em que seguia sem luzes. Depois de ter passado cautelosamente numa passadeira, vi-me perseguido por um carismático automobilista que gritou a bons pulmoes que eu era um atrasado mental, arrogante de merda e outros vitupérios que, a bem da minha sanidade, nao percebi. Aconselhado a descer da bicicleta vi o senhor ainda a passar para o lugar do morto, ameacando sair do carro. Num momento pensei que tinha uma garrafa de vinho na mochila e que o meu amor ao conteúdo de um Serrado branco bem que se poderia esvanecer perante uma ameaca mais física.
O nosso amigo e herói desta crónica viria, eventualmente, a cansar-se das ofensas consecutivas, fazendo uma manobra perigosa retornando ao seu caminho que em nada coincidia com o meu.
Agradeco-lhe do fundo do coracao ter partilhado comigo a sua preocupacao com a minha saúde e com o bem-estar da circulacao rodoviária.
Quando cheguei a casa, recorri por breves instantes a minha vida e tentei-me lembrar de quantas pessoas me gritaram em Portugal nos 30 anos que aí vivi. E lembrei-me de uma. Com aparentes problemas mentais numa aldeia para a zona de Tomar. Afinal, estou como que em casa quando me gritam na rua, pensei. Mais do que em casa, até.
Com aquele sorriso que nos dá o conforto de estar no conforto da casa, abri a garrafa de Serrado e preparei-me para mais um dia, já com luzes na bicicleta.





*1 Está vermelho!!!

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