domingo, 11 de março de 2018

Quantos menos sonhos, mais adornos - Mia Couto

Deixar Santarém rumo ao interior do país é um vasto calvário de terras ardidas, de vidas que por ali ficaram perdidas num negro que nos acompanha durante quilómetros e quilómetros que se nos vao adentrando de forma indelével.
Ao fim de um tempo a vontade de fazer a piada fácil sobre o nome de terras como Cabeca Gorda,  Benlhevai ou Sarnadas desaparece e dá lugar a um sentimento furioso, tal como será porventura furioso o esquecimento a que estas pessoas se verao rogadas ano após ano, conhecendo apenas uma breve luz de atencao que breve se esfuma.
Com o inverno a tentar impor o seu tino, voltam a desaparecer estes nomes até novo verao. Caso ainda haja algo mais para arder.
Aterrar no interior é respirar fundo e tentar descobrir mais do que só Portugal. É, porventura, descobrir-me a mim mesmo em frases, expressoes, rostos e pedras que ali parecem plantados desde tempos imemoriais como se à espera estivessem que lá fosse com o meu eterno pasmo beber inspiracao directamente de um fonte inesgotável.
Ou nao.
Se ver a Santarém onde cresci desaparecer lentamente em lojas fechadas e prédios abandonados é penoso, este périplo pelo interior do país revelou-me um abandono mais acentuado, mais prédios e casas rogadas ao abandono, assim representando uma queda que julgo sempre ser final até nova visita e novo acentuar da desertificacao. 
E com este desertificar, sinto-me eu também a desaparecer, a envelhecer mais depressa num processo desesperancadamente irreversível até que reste apenas a sombra de uma alma e de um ser que a todo o custo vou tentando manter por estas outras terras tao distantes onde vou tentando ser apenas eu dia após dia.


1 comentário:

  1. Não nos pudemos banhar no mesmo rio duas vezes, não é? Também me sinto um pouco num processo de envelhecimento: num país estranho sem amigos, sem amigos num país que deixei para trás. Saudades tuas. Muitas.

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