quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Insensatez



- Insensatez.
- Como assim?
- Insensatez,  foi o que ele disse.
- Assim sem mais nem menos que nem o...
- Pois, que nem o padre João Carlos.  Assim de forte, filha.
- Valha-nos Deus que não sei onde é que este mundo vai parar.
Na vila de Meandros não se precisou de muito tempo para se espalhar a notícia de que o pequeno João Inácio,  filho de Maria de Freitas e de Joaquim Inácio, donos da mercearia local onde os homens se faziam esquecer das durezas do quotidiano em fins de tarde regados com vinho a martelo, padecia de enfermidade tal que ninguém poderia imaginar qual a melhor solução para curar a pobre criança.  Ao sofrimento desmedido de Maria de Freitas expresso de forma convicta no acender de velas no altar de Santa Bárbara e de um copo de bagaço a embalar o chá da manhã,  contrastou a decisão firme do Joaquim Inácio de enviar o pequeno João para o Colégio Militar para que se fizesse homem. Esta coisa da insensatez era um mal que tinha que ser arrancado pela raiz antes que se tornasse numa epidemia social, vociferou o Joaquim enquanto abria a terceira garrafa de uísque em dia de jogo do Benfica. Menos mal que os encarnados ganharam poupando Maria de Freitas aos habituais arrufos da derrota. O amor sempre assume formas que o coração desconhece.
Já o pobre João Inácio parecia não se inteirar do que zoava à sua volta. A vila parecia-lhe mais calma do que nunca, o que não deixava de ser mau sinal. Tal como no mar, demasiada calmia só poderia ser sinal de tempestade para vir. Por isso ocupava os dias desse fim de Setembro em passeios pelos campos dourados a contemplar a sensibilidade agressiva dos cardos secos ou a forma como as folhas das azinheiras se dobravam ao sol impiedoso. A escola era ainda uma realidade distante, difusa nas experiências de mais um verão onde a solidão o tinha voltado a abraçar como só os bons amigos o fazem.
E foi nesse fim de verão que Maria de Freitas o levou ao médico que uma vez a cada quinze dias ocupava a cadeira do Posto Médico para cumprir os exames de rotina,  não fosse ele estar a parir sarampo ou maleita semelhante. Preocupada com os silêncios cada vez maiores do seu único filho e herdeiro total não só da mercearia como de três hectares de oliveiras galegas e sete de vinhedos de boa e reconhecida fama, acabou por ganhar coragem para perguntar se o seu filho sofria dessa doença que o século XXI tinha trazido e que fazia os homens beijarem homens e adoptarem comportamentos iguais aos dos cães que nem sempre olham à diferença de sexo para satisfazerem os seus ímpetos.
- Oh minha senhora, isso é pura insensatez.
Remetida ao silêncio condoido que estas situações implicam, não conseguiu controlar que a sua cabeça se enchesse de imagens do padre João Carlos condenado por herege face à insensatez dos seus actos. Ter negado o privilégio de beijar a mais convicta das crentes, aquela que nunca olhou a meios para apoiar as iniciativas paroquiais, aquela que nunca lhe negou um garrafão de vinho para que também ele pudesse, à semelhança dos homens que frequentavam a mercearia, esquecer-se das durezas do quotidiano, tinha sido demasiado. Após diversas cartas anónimas a denunciarem o comportamento desviante de um homem de Deus que via na imagem de Cristo a perfeição sexual, o padre João Carlos tinha sido vítima de um doloroso e moroso processo de excomunhão.
Mas a vida tem coisas e voltas do diabo, pensou Maria de Freitas depois do diagnóstico do médico. 
Não foi, por isso, de espantar que nessa mesma semana o João Inácio tivesse sido alvejado pelas costas durante um dos seus rotineiros passeios de fim de verão pelos campos que rodeavam a vila de Meandros. À noite os homens beberam ainda mais para acompanhar a dor de um pai que tudo tinha feito pelo seu filho, enquanto Maria de Freitas sentada sozinha na sala contígua ao café embalava uma caneca de  chá de cidreira com dose dupla de bagaço e ouvia o choro furioso do seu marido, relembrando ternamente  o momento fugaz do beijo que conseguiu roubar ao padre João Carlos.

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