- Insensatez.
- Como assim?
- Insensatez, foi o que ele disse.
- Assim sem mais nem menos que
nem o...
- Pois, que nem o padre João
Carlos. Assim de forte, filha.
- Valha-nos Deus que não sei
onde é que este mundo vai parar.
Na vila de Meandros não se precisou
de muito tempo para se espalhar a notícia de que o pequeno João Inácio, filho de Maria de Freitas e de Joaquim
Inácio, donos da mercearia local onde os homens se faziam esquecer das durezas
do quotidiano em fins de tarde regados com vinho a martelo, padecia de
enfermidade tal que ninguém poderia imaginar qual a melhor solução para curar a
pobre criança. Ao sofrimento desmedido
de Maria de Freitas expresso de forma convicta no acender de velas no altar de
Santa Bárbara e de um copo de bagaço a embalar o chá da manhã, contrastou a decisão firme do Joaquim Inácio
de enviar o pequeno João para o Colégio Militar para que se fizesse homem. Esta
coisa da insensatez era um mal que tinha que ser arrancado pela raiz antes que
se tornasse numa epidemia social, vociferou o Joaquim enquanto abria a terceira
garrafa de uísque em dia de jogo do Benfica. Menos mal que os encarnados
ganharam poupando Maria de Freitas aos habituais arrufos da derrota. O amor
sempre assume formas que o coração desconhece.
Já o pobre João Inácio parecia
não se inteirar do que zoava à sua volta. A vila parecia-lhe mais calma do que
nunca, o que não deixava de ser mau sinal. Tal como no mar, demasiada calmia só
poderia ser sinal de tempestade para vir. Por isso ocupava os dias desse fim de
Setembro em passeios pelos campos dourados a contemplar a sensibilidade
agressiva dos cardos secos ou a forma como as folhas das azinheiras se dobravam
ao sol impiedoso. A escola era ainda uma realidade distante, difusa nas
experiências de mais um verão onde a solidão o tinha voltado a abraçar como só
os bons amigos o fazem.
E foi nesse fim de verão que
Maria de Freitas o levou ao médico que uma vez a cada quinze dias ocupava a
cadeira do Posto Médico para cumprir os exames de rotina, não fosse ele estar a parir sarampo ou
maleita semelhante. Preocupada com os silêncios cada vez maiores do seu único
filho e herdeiro total não só da mercearia como de três hectares de oliveiras
galegas e sete de vinhedos de boa e reconhecida fama, acabou por ganhar coragem
para perguntar se o seu filho sofria dessa doença que o século XXI tinha
trazido e que fazia os homens beijarem homens e adoptarem comportamentos iguais
aos dos cães que nem sempre olham à diferença de sexo para satisfazerem os seus
ímpetos.
- Oh minha senhora, isso é
pura insensatez.
Remetida ao silêncio condoido
que estas situações implicam, não conseguiu controlar que a sua cabeça se
enchesse de imagens do padre João Carlos condenado por herege face à insensatez
dos seus actos. Ter negado o privilégio de beijar a mais convicta das crentes,
aquela que nunca olhou a meios para apoiar as iniciativas paroquiais, aquela
que nunca lhe negou um garrafão de vinho para que também ele pudesse, à
semelhança dos homens que frequentavam a mercearia, esquecer-se das durezas do
quotidiano, tinha sido demasiado. Após diversas cartas anónimas a denunciarem o
comportamento desviante de um homem de Deus que via na imagem de Cristo a
perfeição sexual, o padre João Carlos tinha sido vítima de um doloroso e moroso
processo de excomunhão.
Mas a vida tem coisas e voltas
do diabo, pensou Maria de Freitas depois do diagnóstico do médico.
Não foi, por isso, de espantar
que nessa mesma semana o João Inácio tivesse sido alvejado pelas costas durante
um dos seus rotineiros passeios de fim de verão pelos campos que rodeavam a
vila de Meandros. À noite os homens beberam ainda mais para acompanhar a dor de
um pai que tudo tinha feito pelo seu filho, enquanto Maria de Freitas sentada
sozinha na sala contígua ao café embalava uma caneca de chá de cidreira com dose dupla de bagaço e
ouvia o choro furioso do seu marido, relembrando ternamente o momento fugaz do beijo que conseguiu roubar
ao padre João Carlos.
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