quinta-feira, 28 de agosto de 2014

De regresso à escola

Aquando das grandes decisoes sobre o futuro os meus pais (ambos professores) deixaram-me um vivo conselho que a minha irma ignorou, revelando-se assim a grande rebelde da família: Faz o que quiseres, mas nao te tornes professor!
Como bom filho disciplinado que sempre fui, assim o fiz.
Contudo, isso nunca me impediu de trabalhar de perto com escolas num género de toca e foge desta vida adulta que me atingiu sem que realmente o quisesse. Depois da Biblitoeca de Grandola e dos programas de leitura, seguiram-se os contos de forma mais autónoma, as formacoes para professores em Portugal e no Estrangeiro sempre numa relacao ao mesmo tempo estranha e familiar.
Assim sendo, nao terá sido de espantar que esta semana tenha regressado à escola.
Depois de um telefonema a intimidar-me a apresentar-me às 8 da manha (intimidacao é a única coisa que funciona comigo a tais matutinas horas) numa escola, lá fui conduzido e apresentado a uma escola primária. Depois de ter sido literalmente vendido à directora da escola enquanto elemento valioso para o acompanhamento escolar de uma criatura com problemas de indisciplina, vi-me perante perante o S. 11 anos, olhos azuis cheios de tédio e um cabelo espevitado, consegui desde logo arrancar um simpático: Tu tens que aprender mais alemao, ou que?
A escola que me foi atribuída é uma escola para criancas "especiais" que, por uma ou outra razao, nao conseguem figurar no sistema de educacao da livre e hanseática cidade de Hamburgo. Turmas de 14 alunos. Todas as portas se encontram trancadas, tendo apenas os adultos uma cópia da chave mestra, adquirida desde logo junto do senhor que se encarrega da manutencao dos edifícios. Moin, diz-me, enquanto mostra toda uma panóplia de possibilidades de porta-chaves com os mais diversos elementos alusivos ao St. Pauli (clube assaz conhecido pelos seus simpáticos tiffosi).
Por entre o caos de um início de ano lectivo lá comeco a minha funcao de tutoria (schulbegleitung em alemao) do pequeno S. Aos incidentes da sala de aula, onde a palavra "merda" é tolerada pelos professores como sendo algo normal, seguem-se os incidentes no exterior. Nesta primeira semana já tive oportunidade de separar dois adolescentes que partilhavam alegres agressoes e trocas de ameacas e procurar de forma mais ou menos intensiva o paradeiro de duas criaturas que simplesmente nao queriam ir à aula de música.
Às provocacoes constantes do pequeno S. dentro da sala de aula, seguem-se os convites para partilhar os intervalos com ele e ouvi-lo discorrer sobre cartas de Pokemon, futebol e pequenas aulas privadas de alemao. Nao é "dich", é "dir", repete incessantemente à medida que vou falhando dativo e acusativo de forma flagrante. A cada "danke" que lhe respondo, revela sempre uma certa estranheza a estas cortesias de tom latino que vou proferindo. Talvez a latinidade seja um caminho a seguir.
As estórias, de certeza. Hoje contei-lhe a primeira e nao consegui deixar de me surpreender com os olhos azuis depositados nas palavras que me iam tremulamente saindo. No final convidou-me para comer waffles caseiros e ajudá-lo a ordenar as cartas de Pokemon por ordem alfabética, assim prescindindo do intervalo ao ar livre.
Quando me despedi com um "até amanha" no início do segundo bloco de aulas, perguntou-me de forma provocadora se tinha mesmo que regressar no dia seguinte. Tut mir leid, respondi. De regresso recebi um"Nicht schlimm" (Nao é mau)  e um sorriso.
E de sorriso na cara deixei a escola preparando mentalmente para mais um dia.    

domingo, 24 de agosto de 2014

Vida Ficcional

No outro dia foi-me imposto um livro. Toma. Le.
Tremi.
Olhei para a capa e tremi ainda mais ao aperceber-me que nao se tratava de ficcao. Uma coisa foi o tremer incontrolável que senti quando o bibliotecário do Cervantes me encheu as maos com Onetti, Conto Espanhol do Pós-Guerra, Ana María Matute, Benedetti, Seleccao de contos equatorianos, Galeano, Luís Mateo Diez apenas para nomear alguns. Outra coisa é imporem-me um livro de nao-ficcao.
Fazendo um pequeno retrocesso temporal, acho que o último livro de nao-ficcao que li de forma livre (excluindo assim o livro de regras sobre higiene alimentar em alemao ou os diversos livros de linguística dos tempos universitários) terá sido Nietszche, numa tentativa de partilhar o entusiasmo contangiante com que o Goncalo (criatura de cariz mitológico de nacionalidade scalabitana que ainda hoje define a minha nocao de amizade) lia as suas obras. Isto há coisa de uma década atrás (bonita idade esta que tenho em que já comeco a medir o tempo em questao de décadas).
Sentindo a obrigacao de passar os meus olhos por textos (vd. http://narralhices.blogspot.de/2014/05/recomendo-talvez-nao.html) de um senhor ingles que nos tenta ensinar a viver numa cópia frágil da realidade quotidiana, nao consegui nunca esconder o tédio e até uma certa revolta quando alguma frase mais acertiva me entrava pupilas dentro. A afirmacao de realidades e a consequente tentativa de imposicao de uma forma de viver ou de uma realidade absoluta tem-me causado cada vez maior desconforto.
O drama do senhor Feliciano em El día de las puertas cerradas (http://www.amazon.com/El-Dia-Las-Puertas-Cerradas/dp/B002DID1NA) do Equatoriano Oswaldo Encalada Vasquez modela os meus padroes de vida muito mais do que qualquer conselho directamente dado. E isto tudo tendo em conta que estou a viver na democrática Alemanha onde o conceito de liberdade pessoal é algo confuso e, de certo modo, definido por uma estrutura de interesses económicos que coloca a Seguranca Social portuguesa na categoria de infanto-juvenil.
Respirando fundo, olho para o típico céu cinzentao de Hamburgo, ponho as maos à volta da chávena de chá e regresso à ficcao sem data definida para dela sair.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O Pacheco volta a atacar

Velar o sono
acompanhando a respiracao
no contorno branco dos teus seios.
Ficar, assim,
no frio de Hamburgo,
apenas hanseático
e eternamento livre.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Da schiquimificação de Hamburgo

Hamburgo, à semelhança de qualquer boa cidade europeia que se preze, é um foco de desenvolvimento económico, atraindo pessoas dos mais diferentes quadrantes que aqui procuram uma vida. Ele há estudantes, refugiados africanos, informáticos portugueses, economistas estónios, tradutores polacos, alemães de todo o lado, o Ola John e até eu.
Claro está que com toda esta pressao demográfica encontrar um apartamento é difícil, para pô-lo de forma metafórica. Mais difícil é quando Hamburgo é a cidade alemã (e segunda na Europa) com mais milionários, pois é sabido que este tipo de gente aprecia o bom tempo (principal característica desta cidade que me acolheu há ano e meio). Assim sendo pede-se em Hamburgo cerca de 100€/mês extra por uma fabulosa varanda francesa, ou tem-se um senhor de uma imobiliária dizer que 30€ por metro quadrado é preço social por se estar nas imediações de um bairro que se diz de luxo.
Claro está que já pensei que se fosse milionário, coisa que desde logo assumi como objectivo principal da minha vida ao ter ido estudar Línguas e Literaturas Modernas para a FCSH, não viveria, de todo, em Hamburgo. Lisboa, Barcelona ou até mesmo Lyon têm encantos citadinos indescritíveis incrivelmente mais sedutores.
Seja como for, tendo o tasco instalado em Barmbek Süd, bairro de origem operária onde uma senhora de um instituto oficial me disse que tascos culturais não se coadunam com este género de zona, é com surpresa que vejo um vivo processo de schiquimiquificação acontecer aqui à volta. Depois da destruição massiva de um conjunto de lojas de bairro a fim de se construir um condomínio de luxo a apenas uma rua de distância daqui, é a vez das minhas traseiras serem vitimadas por novo condomínio de luxo com ordem de expulsão de uma loja/armazém de vinhos austríacos até Novembro. Isto para não falar da transformação de um bunker em mais um condomínio, porque é super chique viver virtualmente sem janelas!
Devo esclarecer que em Barmbek dificilmente se tem vista para o Alster (lago de águas poluídas onde os alemães se juntam para fazer grelhados ao fim de semana) e que alimenta a vista das casas dos milionários que protestam infinitamente contra os ditos grelhados. Que em Barmbek não há restaurantes onde nos tratam como lixo humano (coisa relevante do mais alto nível social). Que em Barmbek ainda há estudantes e ruas com nomes de compositores. Que Barmbek está afinal bem perto de Uhlenhorst e que estar perto de um bairro chique é quase ou tão bom como estar num bairro chique. Que Uhlenhorst não tem nem metade do charme da Graça. Não tem miradouros e muito menos restaurantes onde nos podemos apaixonar. Não tem pessoas que nos saúdam quando passamos por elas. Tem carros e casas encerrados em si mesmos. E isso é chique. Pelo menos por aqui.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Artur, porque sim



Vais beber café com o pai de uma amiga? Ela é boa?
Confesso que temi perante o convite.  Será que me iria ser impingida uma seita religiosa? Uma oportunidade de negócio irrecusável do qual ainda hoje estaria a pagar as dívidas relacionadas com o investimento inicial, já para nao falar dos subsequentes problemas relacionados com a PJ? Uma ameaca física relacionada com uma falsa interpretacao de um gesto menos púdico com a filha dele também pairou no horizonte.
Do encontro num café perto da faculdade onde fingi estudar trouxe conceitos de Fair Trade, agricultura biológica e um livro sobre o qual me lancou muitas perguntas.  The hitchhiker's guide to the galaxy foi o eleito e usado como introducao a um outro mundo (s?) e tema de futuras conversas. Afinal o pai da amiga nao me queria vender nada. Queria apenas e simplesmente falar. Senti-me tentado a pedir-lhe desculpa por tamanhas bizarrias terem passado sequer pela minha cabeca. Nao pedi.
Mas nao por falta de oportunidade. Trocámos emails, referencias, reencontrámo-nos, conversámos sobre a possível existencia de mundos paralelos.  Sobre os malifícios de viver. Sobre música. Sobre livros que nunca tinha lido. Sobre a possibilidade da realidade ser irreal e vice-versa.  Foram dez anos inconstantes como só os anos o sabem ser. Mas foram dez anos onde cada encontro se fazia na redescoberta de uma cumplicidade construída.
O último encontro lembro-me bem, como soe acontecer nestas ocasioes.  O Artur, que entretanto já tinha deixado de ser o pai da amiga para ter direito a nome e identidade, apareceu no hostel, jantou, confratermizou e sem conseguir esconder as fraquezas incontroláveis da doenca que o invadiu, pediu-me desculpa.
Foram estas as últimas palavras que ouvi da boca dele. Com o aniversário que se seguiu cumpriu-se um círculo perfeito, como só acontece com aqueles para quem o irreal é, afinal, realidade.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Recomendo? Talvez... nao.

Situacao:
Um cliente habitual entra no tasco e confiante de que o conheco, recomendo-lhe um livro de banda desenhada onde a personagem principal tem encontros com músicos épicos como o Cohen, o Bowie, o Lennon, etc, etc. Perante o meu entusiasmo ele olha para a capa do livro de relance, diz que aquilo é o Lennon na capa e vira a cara. Passado tres minutos de abandonar os entornos oficiais dos meus dias regressa com um outro livro de banda desenhada e deixa-o no balcao, aconselhando-me a leitura.

Situacao:
Na estacao do Oriente encontro a Dora Guedes que depois do abraco normal de quem encontra um emigrante assim como que por acaso abre a mala e de lá saca um livro que nao recomendei pessoalmente mas que se lembra de me ver ler com considerável entusiasmo. Como consequencia surgiu este texto: http://avelhapagina.blogspot.de/2014/04/da-dignidade-humana.html (que, diga-se, me encheu de orgulho)

Desde a minha entediante adolescencia que senti necessidade de partilhar de forma entusiasmada com as pessoas de quem gostava leituras e música. Impus livros. Impingi álbuns. Desde esses mesmos anos fui aprendendo que muitas das pessoas que receberam livros da minha mao o fizeram por mera cortesia. Os álbuns talvez tenham sido copiados mas sem garantias de que alguma vez tenham sido ouvidos da mesma forma entusiasta com que os tinha imposto. Os livros, quase nenhuns lidos. Como sei?
Ao longo do tempo fui-me apercebendo de que as pessoas se comecaram a esquivar a comentar o que tinham achado das minhas recomendacoes/imposicoes. Que sempre que recomendava alguma destas duas coisas manifestavam um certo desconforto por entre a tal de cortesia. Que tudo isto me conduziu a uma certa desconfianca em relacao às generosas recomendacoes de outras pessoas. Que com tudo isto amadureci reconhecendo que o processo de leitura é algo de plenamente pessoal assim como a audicao de um bom álbum. 
Implica entrega. Dedicacao. Devocao, até, como se de uma relacao amorosa se tratasse. E nestas coisas nao há como aceitar a intromissao de estranhos. Como um amor platónico, comecei a esperar que os estranhos falassem apaixonadamente de alguma coisa e, em segredo, logo iria procurar.
Uma recomendacao directa implica um compromisso que nem sempre estamos dispostos a assumir.
Contudo este meu translado às andancas alemas fez um reset em todas as minhas prévias aprendizagens no que a isto respeito diz (aqui está uma bela construcao alema onde o verbo salta para o fim por causa da construcao do conjuntivo). Por um lado o completo desconhecimento do que ler ou ouvir em alemao. Por outro o afastamento com o que de bom se vai fazendo nas terras que deixei.
Assim se voltam a abrir as minhas portas para recomendacoes, pois às vezes o mundo me parece ser infinitamente... infinito. E belo!

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Porque há coisas para as quais é complicado arranjar títulos...

Microcosmos:

Ao sentir a bicicleta a escapar-me em dia de chuva por estas terras de Hamburgo, saltei de forma a causar uma certa inveja em todo uma geração de ginastas soviéticos, assim salvando a minha pele de um contacto mais intenso com o pavimento municipal. Contudo, não consegui evitar que a bicicleta fosse a resvalar indo roçar as calças de uma senhora de indumentária empresarial que, como está bom de ver, não se dignou a desviar evitando um possível conflito. Perante o horror de ver a perna das calças levemente tocada por um bocado de lama, a senhora não se escusou a lançar um "ehhhh" de horror e nojo.
Humildemente pedi desculpa afirmando honestamente que a culpa não era minha.
Um "pffff" de nojo existencial saiu dos seus lábios.
Neste momento confesso que a minha latinidade se fez sentir nas veias, proferi um bom par de asneiras em tradicional vernáculo lusitano, e disse-lhe em bom alemão que "esta gente não é normal".
Pegando na bicicleta, prossegui o meu caminho libertando nas pernas todas as minhas frustrações e raivas sociais.

Macrocosmos:

O presidente de uma junta de freguesia schiki-micki (como se diria nestas bandas) de Hamburgo, possivelmente comparável à lisboeta Lapa, anunciou publicamente que iria reabilitar um edifício devoluto a fim de poder receber refugiados sírios.
A opinião dos moradores do bairro logo se fez sentir num conjunto de entrevistas à televisão onde anunciaram que isso não podia ser, pois que seria dos pobres refugiados que se iriam sentir tão mal com as aberrantes diferenças sociais. E onde poderiam eles ir às compras? Ali é tudo razoavelmente mais caro. Talvez Hamburgo tenha outros bairros mais periféricos e baratos para onde os possam enviar. Até pode ser que lá haja outra gente como eles. Que insensato so senhor presidente da junta, proclamaram.
O grito de "esta gente não é normal" voltou a ecoar dentro de mim....