segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Alemanha vs Rússia

Por vezes recebo pessoas que batem à porta, demonstram curiosidade em conhecer o espaço e acabam por ficar.
Por vezes recebo pessoas cuja idade facilmente dobra a minha.
Pois acontece que, num mesmo dia, recebi um alemão e uma russa dentro destes parâmetros.
O alemão, ostentando aquele sorriso sarcástico que tantas vezes aparece em filmes jocosos sobre a II Guerra Mundial, afirmou desde logo ser jornalista para um sem número de sítios de turismo, denunciou desde logo a sua nacionalidade ao pronunciar todos os "w" como "v" e insistir em chamar "abrói" à agência abreu.
A russa, de faiscante cabelo louro e óculos de sol a rivalizarem com os de Sofia Loren nos anos 70, aceitou, desde logo, um convite para ir à Tasca do Jaime para uma tarde de fado castiço, por parte do simpático alemão.
4 horas depois cá me apareceram no castelo com expressões em tudo opostas:
ele, claramente zangado por ter pago 22€ por uma tarde de boa música e pelo facto de ela lhe ter dito que não tinha dinheiro com ela e que lhe pagaria no dia seguinte, constituindo isso um motivo de alta desconfiança e de instauração de um inquérito das SS.
ela, com um sorriso de orelha a orelha a agradecer a recomendação de ter indicado um sítio tão castiço e típico.
O acerto de contas ficou marcado para o dia seguinte.
A russa foi passar uma última noite num hostel da zona do Marquês, deixando-me implacavelmente entregue às divagações do senhor alemão, que me acusou de não o ter avisado que um prato de tapas de queijo e presunto poderia custar 15€ e que a senhora era tão simpaticamente insistente em pôr comida e bebida na mesa, tendo levado com uma simpática resposta de que os donos do estabelecimento tinham que pagar aos músicos, pois ele também têm direito à vida.
No dia seguinte, veio-me logo perguntar a que horas estava prevista a vinda da senhora russa ao hostel. Respondi no meu melhor tom seco de quem acabou de acordar: Entre as 10 e as 11.
Às 11h05 veio ter comigo anunciando sobriamente que ela já não viria e que este povos de leste são assim mesmo e que já tinha perdido os seus 10€ e que isto há mulheres que assim vivem à custa dos homens.
Sorri de forma descontraída e quase tive para ir buscar uma nota de 10€ e enfiar-lha rabo acima. Felizmente que me foquei na lavagem da loiça.
O senhor por aqui andou até ouvir a porta tocar. Deu um pequeno salto, começou a arrumar os seus papéis.
Quando ela entrou na sala, já ele se tinha um sorriso espetado e largou um sonoro "Bonjourrrr Madame!" que a fez dar um pequeno salto de medo e ignorá-lo na medida do que ele tinha pedido.
Chateado com isto, desencadeou um sem número de ataques fazendo-me lembrar as miúdas que me apavoravam aos 12 anos, com toques de pura mesquinhez e insinuações de fazer corar as paredes.
Ao cair da noite, a senhora russa, vingou-se da mais elegante forma social gozando com ele toda um santo serão em que resolveu abrir uma garrafa de Porto e partilhá-la para com as pessoas do hostel num gesto de pura partilha, assim contrastando com a já famosa sovinice germânica.
Contudo, não se fez rogado ao deixar apenas acesa uma luz de presença e pôr Kenny G a tocar no pc aquando da primeira degustação de vinho, assim criando um ambiente do mais kinky possível, causando tremendo riso escarninho entre todos os presentes.
A este ambiente, respondeu a senhora russa com risos imensos, pedidos de música portuguesa e um sem número de perguntas sobre hábitos e costumes deste tão curioso e pacífico povo à beira-mar plantado.
Não aguentando tremendo ritmo de alegria e joie de vivre, o senhor viu-se obrigado a retirar para o seu quarto recusando entrar em tão hilariantes conversas .
Hoje de manhã havia um grande sorriso e uma cara de tremendo amuo.
Imaginem a quem pertencia cada uma...

sábado, 22 de janeiro de 2011

o Nome da Chave

Por muito aclamado e bom que seja o Nome da Rosa de um tal de Umberto Eco, não se compara nem em forma nem em tensão literária a um profundo mistério que me tem vindo a inquietar desde que abri o hostel.
Sentem-se, encostem os costados e disfrutem, se faz favor:

Corria o mês de maio, quando os primeiros problemas com a chave da casa de banho começaram. Duas chinesas ficaram trancadas dentro da casa de banho, vociferando estranhas palavras num misto de alemão e cantonês. Estando eu há pouco tempo por estas paragens de si belas e ignotas, pus um ar de mitra de bairro e corri rumo à loja dos chineses mais próxima (curiosa ironia) para ir comprar uma chave de fendas capaz de desmontar a fechadura.
Uma vez chegado a casa, ainda meio ofegante, dei com o facto misterioso de já terem conseguido abrir a porta por entre guinchinhos de excitação.
Mal sabia eu que havia de ser estes os primeiros de muitos.
Resolvi tirar a chave durante uns tempos a fim de evitar novas guincharias. Mas foram esses mesmos tempos cheios de guinchinhos de temor de invasões de privacidade em alturas desadequadas o que, aparentemente, é uma tradição em alguns dos países que aderiram à UE em 2004. A verdade é que os meus pobre tímpanos obrigaram a mente a ponderar e a agir de forma resoluta.
Perante tamanho choque cultural, fiz regressar a chave à sua fechadura, assim protegendo a integridade e decoro dos hóspedes mais zelosos da sua privacidade.
Entretanto, e sem grande espanto, já houve mais pessoas a ficarem presas graças a uma tremenda não compreensão do funcionamento de fechaduras, berros de desespero, sorrisos de alívio e experiências que jamais esquecerão nos dias das suas vidas.
Talvez seja mera coincidência, mas cerca de 90% das pessoas que têm problemas com as fechaduras da casa são de origem asiática... Talvez pudesse desenvolver uma qualquer teoria, mas deixo isso ao cuidado do atento leitor.
E tudo assim corria , na mais perfeita e pura harmonia até ao dia em que a chave desapareceu.
Comecei a olhar para os hóspedes com o olhar clínico e implacável de um Horatio Caine mas nada me foi dado descobrir.
Curiosamente, não houve refilares, vozes altercadas, tudo numa pacífica calma de quem, por vezes, dá mostras de salutar convivência. Deixei então esquecer este assunto durante, precisamente 4 dias. 96 horas, até que hoje acordei com vozes afogueadas e guinchinhos nervosos:
Havia alguém preso na casa de banho.
Mais uma vez a minha presença bastou para que a porta se abrisse e para que, de entre nuvens de vapor, saísse uma cara vermelhusca a agradecer tamanha libertação, apenas comparada com o desembarque na Normandia.
A chave voltou e de que maneira.
Estimado ladrão, será que poderias voltar a dar esse jeitinho na chave?

E ah, digam lá que isto não é muito mais interessante do que pessoas que morrem ao ler um livro que já não existe?

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Bella ciao

Estando eu posto em sossego a ler, dou com um italiano entretido a desfazer um efeito de natal que por aqui tem andado a fazer companhia aos transeuntes.
De forma aprumada e algo descarada ia arrancando uns fios de ráfia que circundam um catita homem de neve.
Quando questionado sobre o porquê, respondeu de forma honesta que precisava deles, assim continuando a arrancar.
Enquanto dava voltas com desses fios a uma concha que tinha mão, fui obrigado a perguntar-lhe se ele achava aquela atitude minimamente normal, até porque estava a destruir património que não era dele.
Fazendo ele aquela cara típica de quem acha que o mundo nasceu em Roma e que o italiano é a língua mais comummente falada e escrita em todo o universo (estudos recentes indicam que os contactos alienígenas até hoje realizados foram todos feitos em italiano brandindo ao alto réplicas do Berlusconi assim evitando possíveis invasões do nosso planeta), respondeu-me que precisa dos fios e levou ao alto a concha que tinha na mão.
De forma piedosa menti-lhe dizendo que o enfeite não era meu e que tinha que o devolver de forma mais ou menos inteira, ao que ele se apressou a lançar fio de ráfia solta sobre a estrutura, a passar a mão como quem acaricia um cão e a encolher os ombros, lamentando a sua triste sorte, pois tão precisava daquele pedaço de ráfia.
Lamento meu bom amigo, mas estes dias que por aí andam não são fáceis para ninguém...

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

E assim termina o ano

Confesso que passa por aqui muito boa gente a quem eu não consigo pronunciar o nome.
Eles são coreanos, japoneses, chineses, bascos, um sem número de povos de hábitos e costumes estranhos.
Mas no que toca a nomes verdadeiramente curiosos, o prémio de 2010 vai para uma futura advogada francesa que se apresentou como Marineige.
Sendo que passei grande parte dos meus anos de francês no liceu a pensar em futebol, matraquilhos, na rapariga que se sentava ao meu lado nas aulas, na geometria dos tacos do chão das salas dos anos 40 e na importância dos movimentos republicanos na Catalunha, não consegui perceber o nome.
Marinezzzz, pareceu-me.
Perante o meu ar de espanto, ela repetiu, naquele tom de superioridade civilizacional que marca os gauleses aquilo que me pareceu ser: Marinezzzzzz
Sorri e afastei-me. Contudo, ela, atenta a esta minha falha linguística confessou-me ser de origem espanhola e que o nome dela era, nem mais nem menos do que uma tradução para o francês de Marinieve, Maria das Neves em bom português.
Emocionado, contive um sorriso de escárnio, pus-lhe a mão no ombro e encetei conversa com o meu primeiro hóspede de Taiwan, que ao saber desta sua condição me deu um abraço esmagando-me de felicidade asiática.
E assim se acaba um ano na esperança de reacções menos eufóricas e pessoas com nomes mais pronunciáveis.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Eesti

De todas as estirpes de hóspedes que por aqui passam, há um género que me irrita particularmente:
Os indivíduos que vêm a outros países apenas para confirmar que o país de origem é melhor do que aquele que estão a visitar.
Pois ontem chegou-me um jovem de quase dois metros oriundo desse grande exemplo civilizacional que é a Estónia. Com pouco mais que um milhão de habitantes a Estónia é conhecida internacionalmente pelas coisas que todos nós conhecemos.
Pois a bela alma veio de lá com os seus conhecimentos adquiridos ao fim de um ano de aturado estudo da língua portuguesa com comentários como tudo é tão barato em Portugal, como as lojas portuguesas não aceitam pagamentos com cartão de multibanco para maquias de 1 e 2 euros, como o único café de uma aldeia ao pé de Góis não tem wifi, como o nosso leite ultrapasteurizado não presta, como o nosso leite fresco é apenas semelhante aos piores que têm na Estónia e de como é tão mais caro, de como o país é quente e de fácil vivência, de como é ridículo construir cidades em 7 colinas.
Depois de conversa aturada pelo pobre Alex sobre as especificidades e diferenças da língua portuguesa entre Portugal e Brasil com comentários como: no Brasil não se fala português correcto porque há imprecisões gramaticais, de como o português europeu soa a algo aristocrático, de como é uma língua simples e elementar, pese embora ainda não tenha da sua boca ouvido uma qualquer palavras portuguesa bem pronunciada.
Talvez seja este post uma homenagem à paciência do Alex que repetiu ad infinitum a palavra "moram" que a jovem alma dizia "mourão" e não se apercebia das diferenças fonéticas, afirmando, de forma convicta que estava a dizer bem e que não havia diferença.
O ponto alto da noite foi um magnífico berro afirmativo em pleno Bacalhoeiro sobre como eu não tinha percebido como o cantor brasileiro tinha cantado com sotaque português no início, tendo depois regressado ao registo natural dele.
Claro está que reconheci uma superioridade intelectual deste jovem, que saberá, melhor que eu ou qualquer outro nativo do português, reconhecer estas subtilezas.
Como tenho um hostel que se pauta pela mediocridade intelectual, convidei-o a sair.
Que isto o Natal não é todos os dias...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Como Lisboa influenciou Gogol

Comentou-me uma cliente que, em Lisboa, lhe parecia ter visto muito personagem digno de livros de Gogol e Tchekov.
Sorri e limitei-me a educadamente ignorar os grandiosos planos de encerrarem as alas de psiquiatria dos nossos belos hospitais. Claro está que também a desmenti, começando desde logo a fazer contas mentais a fim de a desmentir.
Aqui neste canto da Graça onde habito só há o Preto do chapéu que fala sozinho ao fim de vários cartões de vinho, discutindo política de forma intensa com o seu "amigo", o do bigode que adopta em jardins públicos posições de fazer inveja ao family guy, o velhote corcunda que lê o expresso e carrega caixotes do lixo de um lado para o outro, um espadaúdo africano que consegue dormir nas mais estranhas e desconfortáveis posições nos muros do clara clara, o arrumador Raúl, oriundo de Badajoz e que recentemente lançou uma fatwa sobre um casal romeno, a senhora grande que repete ad infinitum "filho de uma granda vaca", o Alves que ameaça os clientes que não são do Benfica e que fala ao telemóvel no meio da estrada interrompendo frequentemente o trânsito, o senhor do lixo que cumprimenta e sorri a toda a gente que passa na rua mostrando o seu olhar esbórneo e os dentes podres, o drogado de olhar esbugalhado que tenta assaltar pessoas e que depois pede desculpa pelos sustos e maus jeitos, o buldogue francês que dá pulinhos maricas e o qualquer coisa velhote que me olha com um ar mais sapiete que a lagarta da Alice no País das Maravilhas.
Portanto, não vejo por aqui assim tantos personagens quanto isso e assumindo, como assumo, que o miradouro da Graça é um microcosmos de Lisboa, não haverá assim tantos por essas colinas fora.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Que persistência

Há coisas que, por muito que viva, creio nunca vir a entender na totalidade.
Uma delas é a paixão italiana por serem esmagados nos matraquilhos.
Confesso que fazia tempo que não jogava quando por aqui surgiram uns italianos que já por aqui estiveram duas vezes e que ainda não se aperceberam que sinto um especial prazer em tratá-los mal.
Pois não obstante a minha dissimulada falta de simpatia com que os recebi uma terceira vez, eles sorriram, eles entraram a falar de tal forma alta que todos os possíveis fantasmas de almas penadas que nesta casa existam acordaram sobressaltados e assumiram um à vontade normal de quem já conhece os cantos à casa.
Até aqui, tudo normal em relação a pessoas nascidas na bota da Europa onde se elegem pessoas como Berlusconi como primeiro-ministro apenas para lhe partir os dentes da frente.
O que foi realmente estranho foi o facto de um deles, depois de já ter sido humilhado mais vezes que eu paguei impostos (e refiro-me aos comuns produtos do dia a dia), me veio pedir para jogar matrecos à frente de todos os seus amigos.
Sendo uma pessoa a quem a violência física e psicológica pura e simplesmente repugna, evitarei descrever aqui a forma humilhante como fui marcando golos enquanto enunciava e enumerava velhas glórias do futebol italiano como Paolo Rossi, Vialli ou Ravenelli para desespero e surpresa dos presentes.
No final, e cumprindo uma secular tradição italiana, não houve direito aos tradicionais apertos de mão, mas sim a um andar acabrunhado enquanto se vocifera em dialecto da Calábria ou uma qualquer outra zona que produza vinho espumante.
Se o intrépido jovem italiano continuar a vir cá até me ganhar, acho que tenho o negócio mais ou menos garantido pelos próximos tempos.
Grazie mile!