Depois de ter abandonado Hamburgo com amenas temperaturas a rondarem os quinze graus e chuva (coisa típica do verao destas bandas) e ter aterrado em Madrid com trinta e oito e nem sombra de nuvens nos caminhos a percorrer, comecei a cumprir as minhas tradicionais peregrinacoes sempre que estou naquelas bandas.
Para além dos sítios turísticos e das obrigatórias paragens para ocasionais refrescos e respectivo tapeo, há uma pequena rua junto à Atocha à qual me dirijo há anos como um fiel peregrino. Na Cuesta de Moyano há pequenos quiosques com livros em segunda mao que desde sempre alimentaram a minha sede de cosneguir a um módico preco livros há muito esgotados ou descatalogados.
Ora estando eu inclinado sobre o hecatombico Un Buen Partido do senhor Vikram Seth e meditando sobre a sua eventual compra, eis que escuto uma voz soturna atrás de mim:
- Le gustaría saber cuando va a morir?
O dono do quiosque tinha resolvido encetar uma agradável conversacao, possivelmente impressionado pelas 1423 páginas do tomo que me comecava desde já a danificar os pulsos*.
- Ah, na realidade nao. Quando acontecer, aconteceu. - respondi eu de forma melódica enquanto ponderava sobre os efeitos nocivos do sol das 15 horas de Madrid.
- Pois eu sim, respondeu o dono do quiosque. Mas enfim. Falemos entao de política, e a seguir comecou a descorrer sobre os problemas de nomeacao de governo e a desevolucao política do PSOE nos últimos anos.
Quando me afastei, com o tal tomo do Vikram Seth e um livro de contos sobre cidades, tinha o coracao cheio do calor de ter tido uma bela discussao ideológica capaz de mudar o rumo existencial de milhoes de pessoas.
Uma semana mais tarde, eis que me vejo sentado num dos casticos cafés que refletem a fachada da Campanha, no Porto. Pedindo uma merenda, eis que me deparo com o ar estupefacto do empregado que, sem hesitar, dá início a um virtuosismo de palavreado que tentarei reproduzir com a maior fidelidade:
- Ora bem, o senhor deseja, portanto, um folhado com fiambre e queijo, ou um outro mais compacto com chouricao e também queijo, por assim dizer?
- A segunda possibilidade, disse eu sem titubear, resistindo a tamanho verbialismo.
- Refere-se, portanto, o senhor, ao lanche, se bem me é dado entender.
- Porventura.
- Esta gente vem para aqui falar em estrangeiro e um gajo que se desenrasque! A sorte é que já tenho experiencia neste ramo!
Quando veio com o pedido, nao hesitou em perguntar bem alto a quem é que dava uma pera, referindo-se ao compal de pera que tinha pedido.
Em seguida poe-me a mao no ombro e comeca-me a contar que vive com uma mulher quinze anos mais velha e que ela cumpriu agora os 61 e que continua a amá-la como no primeiro dia e o que importa na vida é ser feliz. Tomado o pequeno-almoco, agradeci as palavras e apanhei o comboio rumo a Santarém com o coracao um pouco mais quente.
De regresso à Alemanha e também no comboio que parte de Hamburgo já com relativo atraso, eis que o motorista faz soar a sua voz nos altifalantes do comboio:
- Senhores passageiros, o nosso comboio sofrerá um atraso ainda maior por causa de um passageiro em cadeira de rodas que quer entrar.
Mais tarde, chega-nos a voz da revisora:
- Senhores passageiros, se querem que o nosso comboio recupere um pouco do atraso que tem, pede-se o favor de utilizarem uma das quinze portas deste comboio e nao apenas uma. Saiam de forma ordenada e rápida, se faz favor!
Nada como utilizar os ineficazes servicos da Deutsche Bahn para me deixar de ditos e encontros transcendentes de índole ibérica.
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
segunda-feira, 13 de junho de 2016
Sol em Hamburgo?
Mais coisa menos coisa vivo e trabalho na cidade mais chuvosa da Alemanha, o que por si, já é dizer muito.
Um dia só se pode considerar normal quando morrinhar durante, pelo menos, duas horas e meia consecutivas, remetendo o bom humor das pessoas para mais longíquas e exóticas paragens como Maiorca ou, até mesmo, Portugal. Independentemente de ser Inverno ou Verao, o céu assume uma tonalidade cinzenta que, a pouco e pouco, dá processo a uma curiosa osmose resultando numa evidente perda de pigmentacao da pele.
Pese embora esteja a trabalhar numa escola para meninos aumentados, como o definiria a minha querida Mercè Escardó i Bas, a situacao, como está bom de ver, nao mudou.
Os dias continuam cinzentoes e carregados de uma insatisfacao atmosférica capaz de competir com o meu mau humor matinal.
Contudo, na turma onde trabalho há uma pequena com trissomia 21 que todos os dias, quando se lhe pergunta como está o tempo, num ritual pedagógico de utilizacao do Talker, responde invariavelmente que o sol brilha. E isto, mesmo quando confrontada com a realidade que nos entra pela janela dentro remexendo com as nossas emocoes mais profundas.
Ontem, quando confrontada com o intenso molha tolos que deixava impressas grossas gotas nas árvores que rodeiam a escola, limitou-se a apontar para o céu cinzentao e dizer que tinha a certeza que, por trás das nuvens, haveria sol e que ele continuava a brilhar todos os dias.
Num breve instante esse tal de sol voltou a brilhar e ela olhou para nós com o sorriso inabalável daqueles que sabem que a sua razao ultrapassa muitas vezes a nossa compreensao.
E sim, confesso, ela é um pequeno sol neste cinzento de Hamburgo.
Um dia só se pode considerar normal quando morrinhar durante, pelo menos, duas horas e meia consecutivas, remetendo o bom humor das pessoas para mais longíquas e exóticas paragens como Maiorca ou, até mesmo, Portugal. Independentemente de ser Inverno ou Verao, o céu assume uma tonalidade cinzenta que, a pouco e pouco, dá processo a uma curiosa osmose resultando numa evidente perda de pigmentacao da pele.
Pese embora esteja a trabalhar numa escola para meninos aumentados, como o definiria a minha querida Mercè Escardó i Bas, a situacao, como está bom de ver, nao mudou.
Os dias continuam cinzentoes e carregados de uma insatisfacao atmosférica capaz de competir com o meu mau humor matinal.
Contudo, na turma onde trabalho há uma pequena com trissomia 21 que todos os dias, quando se lhe pergunta como está o tempo, num ritual pedagógico de utilizacao do Talker, responde invariavelmente que o sol brilha. E isto, mesmo quando confrontada com a realidade que nos entra pela janela dentro remexendo com as nossas emocoes mais profundas.
Ontem, quando confrontada com o intenso molha tolos que deixava impressas grossas gotas nas árvores que rodeiam a escola, limitou-se a apontar para o céu cinzentao e dizer que tinha a certeza que, por trás das nuvens, haveria sol e que ele continuava a brilhar todos os dias.
Num breve instante esse tal de sol voltou a brilhar e ela olhou para nós com o sorriso inabalável daqueles que sabem que a sua razao ultrapassa muitas vezes a nossa compreensao.
E sim, confesso, ela é um pequeno sol neste cinzento de Hamburgo.
segunda-feira, 28 de março de 2016
Do biciclismo em dias de neve e das suas consequências
Em Outubro do ano passado comprei Slow Man de Coetzee, na esperança de que ele me acompanhasse de forma fiel no périplo por terras indianas. Contudo, não o li. Ao chegar a Mumbai encantei-me com outras leituras e ele foi reposto na prateleira assim marcando de forma indelével o meu regresso a terras germânicas.
Meses se passaram e com a vinda do novo ano e as inevitáveis neves de Fevereiro, espaldei-me com algum espalhafato de bicicleta. Cinco dias no UKE (hospital universitário aqui do burgo), uma anestesia geral, placas de titânio na boca e uma semana de retoma gradual dos mais normais hábitos de existência humana (andar, vociferar contra velhinhas, ir às compras e beber chá, entre outras), eis que parti rumo a Barcelona e à eternamente bela zona do Vallés. Contei estórias, bebi inspiração junto de quem sabe e o faz com uma mestria e paixão únicas, vagabundeei e nos mais variados sítios vi-me obrigado a contar com mais ou menos sórdidos pormenores a forma como ia deixando a mandíbula presa num poste em terras frias de forma a conseguir a compaixão necessária que me permitisse que alguma alma caridosa numa cozinha mais ou menos encoberta me triturasse a comida de forma a que eu a pudesse deglutir de forma sofrida e assim obter a energia que me permitisse continuar a viver. Recebi ora olhares compadecidos, ora de troça, mas sempre um desejo mais ou menos sincero de melhoras acompanhado de comidas com as mais diversas cores mas com uma só textura.
Semana volvida lá rumei a Portugal de forma a revisitar sensações, aí aprendendo que favas trituradas até que pode ser um belo petisco ou que as alheiras se podem comer sem ser mastigadas. As estórias voltaram a acompanhar os meus passos e vivi momentos de singela beleza difíceis de descrever, porventura por causa dessa coisa que muitas vezes nego e que às vezes surge arrasadora e a que se chama de saudade.
Depois de um intento de partida negado pelos controladores aéreos franceses que me obrigaram a ficar mais um par de dias a usufruir de sol, boa companhia e boa comida, lá regressei a Hamburgo, enfrentando o céu cinzento algo revigorado.
E foi no pleno desse vigor que decidi avançar sem medos para a experiência de comer fora. Opção: restaurante indo-italiano aqui na vizinhança dos meus aposentos. Tendo em conta a substancial molhanga com que a maioria dos pratos indianos são servidos, pensei que seria relativamente fácil triturarem-me o seu recheio.
Nada mais falso.
À desagradável estranheza da empregada, seguiu-se a do dono que se recusou a fazê-lo afirmando que iria perder o sabor original. Expliquei novamente que me encontro condicionado uma vez que não consigo mastigar e que não me importava de comer um sabor diferente e pagar o mesmo preço por ele.
- Porque é que não come esparguete?
- Porque não consigo mastigar, querido - respondi de forma ternurenta como quem se apronta para lhe dizer das boas.
- Pois assim não estou a ver o que pode comer aqui. Pode-se ir embora, que não tem problema.
Sem o olhar e com a convicção de jamais lá voltar, lembrei-me subitamente que nesse mesmo dia tinha acabado de ler o Slow Man do Coetzee onde o escritor sul-africano descreve os sofrimentos e contrariedades de um homem que teve justamente um acidente de bicicleta.
Tivesse eu lido o livro em Outubro do ano passado e já saberia que nem toda a gente se compadece do azarismo alheio.
Meses se passaram e com a vinda do novo ano e as inevitáveis neves de Fevereiro, espaldei-me com algum espalhafato de bicicleta. Cinco dias no UKE (hospital universitário aqui do burgo), uma anestesia geral, placas de titânio na boca e uma semana de retoma gradual dos mais normais hábitos de existência humana (andar, vociferar contra velhinhas, ir às compras e beber chá, entre outras), eis que parti rumo a Barcelona e à eternamente bela zona do Vallés. Contei estórias, bebi inspiração junto de quem sabe e o faz com uma mestria e paixão únicas, vagabundeei e nos mais variados sítios vi-me obrigado a contar com mais ou menos sórdidos pormenores a forma como ia deixando a mandíbula presa num poste em terras frias de forma a conseguir a compaixão necessária que me permitisse que alguma alma caridosa numa cozinha mais ou menos encoberta me triturasse a comida de forma a que eu a pudesse deglutir de forma sofrida e assim obter a energia que me permitisse continuar a viver. Recebi ora olhares compadecidos, ora de troça, mas sempre um desejo mais ou menos sincero de melhoras acompanhado de comidas com as mais diversas cores mas com uma só textura.
Semana volvida lá rumei a Portugal de forma a revisitar sensações, aí aprendendo que favas trituradas até que pode ser um belo petisco ou que as alheiras se podem comer sem ser mastigadas. As estórias voltaram a acompanhar os meus passos e vivi momentos de singela beleza difíceis de descrever, porventura por causa dessa coisa que muitas vezes nego e que às vezes surge arrasadora e a que se chama de saudade.
Depois de um intento de partida negado pelos controladores aéreos franceses que me obrigaram a ficar mais um par de dias a usufruir de sol, boa companhia e boa comida, lá regressei a Hamburgo, enfrentando o céu cinzento algo revigorado.
E foi no pleno desse vigor que decidi avançar sem medos para a experiência de comer fora. Opção: restaurante indo-italiano aqui na vizinhança dos meus aposentos. Tendo em conta a substancial molhanga com que a maioria dos pratos indianos são servidos, pensei que seria relativamente fácil triturarem-me o seu recheio.
Nada mais falso.
À desagradável estranheza da empregada, seguiu-se a do dono que se recusou a fazê-lo afirmando que iria perder o sabor original. Expliquei novamente que me encontro condicionado uma vez que não consigo mastigar e que não me importava de comer um sabor diferente e pagar o mesmo preço por ele.
- Porque é que não come esparguete?
- Porque não consigo mastigar, querido - respondi de forma ternurenta como quem se apronta para lhe dizer das boas.
- Pois assim não estou a ver o que pode comer aqui. Pode-se ir embora, que não tem problema.
Sem o olhar e com a convicção de jamais lá voltar, lembrei-me subitamente que nesse mesmo dia tinha acabado de ler o Slow Man do Coetzee onde o escritor sul-africano descreve os sofrimentos e contrariedades de um homem que teve justamente um acidente de bicicleta.
Tivesse eu lido o livro em Outubro do ano passado e já saberia que nem toda a gente se compadece do azarismo alheio.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2016
O falecimento a duas rodas
Ao fim de cerca de 7000 quilómetros a minha bicicleta que custou cinquenta euros resolveu, de forma incompreensível, falecer.
Da última vez que a tinha deixado na oficina a sentenca já lhe tinha sido lida sob forma de um ignominioso rótulo de veículo nao apto à circulacao que o mecanico lhes pos. Apesar disso, ainda se aguentou durante uns bons 400 quilómetros sem queixas de maior, tirando os pára-lamas partidos que rangiam que nem a Baixa Lisboeta aquando do terramoto de 1755, as mudancas estáticas impossíveis de alterar, o ondular dos pedais e a corrente enferrujada. Nada de mais, portanto.
No dia em que resolveu falecer o meu coracao encheu-se de lágrimas ao lembrar-me de todas as horas que partilhámos, dos esforcos e frustracoes que com ela vivenciei de forma sempre íntima e pessoal. Mas o destino é mesmo assim e, está bom de ver que se impos a necessidade de comprar uma substituta à qual me pudesse afeicoar de forma igualmente intensa e assim esquecer este doloroso momento de separacao.
Uma vez efectuada a compra, resolvi deixar a antiga bicicleta à sua sorte na rua e sem cadeado. Tres semanas e nada. Lá continuava, triste e solitária, olhando-me de forma incriminatória fazendo-me amiúde lembrar que talvez tenha sido eu que desisti dela e nao o contrário.
E eis que alguém a tentou levar. Mas nao foi longe. Duas casas mais abaixo foi abandonada contra o muro do jardim que a ladeava, lancando-me um olhar de terno desespero quando passei por ela a caminho da rotinária ida ao lixo. No regresso peguei nela e voltei a deixá-la junto das outras, novamente sem cadeado, mas com um carinho sem comparacao.
Uma semana semana mais se passou e ela lá continua, a fazer companhia à minha nova companheira numa convivencia que, espero, em breve seja de pacífica coabitacao. Ou que alguém que a possa amar e dar nova vida a leve. O meu coracao agradecerá sorrindo como antigamente.
Da última vez que a tinha deixado na oficina a sentenca já lhe tinha sido lida sob forma de um ignominioso rótulo de veículo nao apto à circulacao que o mecanico lhes pos. Apesar disso, ainda se aguentou durante uns bons 400 quilómetros sem queixas de maior, tirando os pára-lamas partidos que rangiam que nem a Baixa Lisboeta aquando do terramoto de 1755, as mudancas estáticas impossíveis de alterar, o ondular dos pedais e a corrente enferrujada. Nada de mais, portanto.
No dia em que resolveu falecer o meu coracao encheu-se de lágrimas ao lembrar-me de todas as horas que partilhámos, dos esforcos e frustracoes que com ela vivenciei de forma sempre íntima e pessoal. Mas o destino é mesmo assim e, está bom de ver que se impos a necessidade de comprar uma substituta à qual me pudesse afeicoar de forma igualmente intensa e assim esquecer este doloroso momento de separacao.
Uma vez efectuada a compra, resolvi deixar a antiga bicicleta à sua sorte na rua e sem cadeado. Tres semanas e nada. Lá continuava, triste e solitária, olhando-me de forma incriminatória fazendo-me amiúde lembrar que talvez tenha sido eu que desisti dela e nao o contrário.
E eis que alguém a tentou levar. Mas nao foi longe. Duas casas mais abaixo foi abandonada contra o muro do jardim que a ladeava, lancando-me um olhar de terno desespero quando passei por ela a caminho da rotinária ida ao lixo. No regresso peguei nela e voltei a deixá-la junto das outras, novamente sem cadeado, mas com um carinho sem comparacao.
Uma semana semana mais se passou e ela lá continua, a fazer companhia à minha nova companheira numa convivencia que, espero, em breve seja de pacífica coabitacao. Ou que alguém que a possa amar e dar nova vida a leve. O meu coracao agradecerá sorrindo como antigamente.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
As rocambolescas aventuras de se arrancar um dente do ciso em Hamburgo
Pela primeira vez desde há muitos anos fui a uma consulta de dentista e, ao contrário de todas os intentos da aplicada senhora, nao me foi descoberto nada de novo.
Nada!
Uma cárie, uma qualquer infeccao digna de um episódio dos Ficheiros Secretos ou até uma possível periodontite num futuro mais ou menos próximo.
Nada!
Impecável, disse a dentista.
Num momento em que já me encontrava numa género de euforia interior como há muito tempo nao vivia pronto para uma celebracao sem antecedentes, eis que me olha no fundo dos meus olhos e lanca um: pode entao ir arrancar o dente do ciso, assim como quem nao quer a coisa.
Num cartao escreveu-me uma recomendacao de um colega e lá fui eu, qual alma penada, marcar uma consulta para proceder a mais um episódio da minha traumática experiencia com a cremalheira (como em Grandola simpaticamente se referiam ao conjunto de estruturas esbranquicadas que se encontram na boca a fim de nos facilitarem o processo digestivo).
Chegado o dia as maos suavam-me de forma desmesurada, mesmo apesar das temperaturas negativas que se abateram sobre Hamburgo nestes últimos tempos. O meu coracao ameacava parar a qualquer momento em virtude das suas abusivas taquicardias. As pernas tremiam-me que nem as do Veloso antes da marcacao do pénalti na final de 88 ante o PSV.
Chegado ao belo edifício modernista exclusivamente dedicado a consultórios médicos, lá me dirigi à recepcao. Uma senhora dos seus cinquenta anos passou-me para a mao um extenso questionário sobre os meus mais diversos hábitos e doencas. Devo dizer que a mais ligeira constipacao assume em alemao contornos de algo capaz de nos levar para a tumba sem pestanejar.
Preenchido o questionário, uma simpática menina que se revelou incapaz de pronunciar o meu nome lá me arrastou para a fatal sala onde, ò Deus, a minha boca seria submetida a atrocidades cujos pormenores vos pouparei.
A minha confianca nao aumentou quando me apercebi que a dita cuja era uma estagiária que revelou certa dificuldade em abrir o pacote esterilizado com os instrumentos da tortura que se iria seguir. Ao me perguntar se estava tudo bem comigo, nao se coibiu de levantar os polegares ao jeito de Circo Romano. Apesar do meu intenso desejo de os inverter apontando para o chao, limitei-me a tentar sorrir de forma a tranquilizá-la.
- O doutor já vem - disse-me.
Dez minutos depois eis que aparece o carniceiro. Enquanto me dava anestesia avisou-me que iria sentir uma pica numa total falta de coordenacao temporal pois já a estava a sentir como a alguém a quem muito quero. Dada a anestesia, tornou a abandonar a sala, voltando-me a deixar sozinho com a rapariga que parecia agora estar em puro sofrimento qual Teresa de Ávila face às suas místicas revelacoes.
Incapazes de falar um com o outro, deixei que a anestesia fizesse efeito, esperando mesmo que ele se tivesse enganado e me tivesse dado uma dose suficiente para me fazer adormecer deixando-me num estado pré-comatoso.
Infelizmente nao se enganou e passado um bocado lá voltou a surgir. Atirou-me uma toalha para o rosto e sem pudor cortou-me a gengiva e arrancou-me o dente à bruta num processo que nao demorou mais do que dois minutos.
- Leia as instrucoes no folheto que lhe vao dar e um bom resto de dia.
E assim se foi embora sem que tivesse tempo de me fixar na cara do meu cruel carrasco.
Já a minha pessoa ficou atordoada com um papel na mao onde consegui decifrar que em caso de problemas poderia voltar a ligar para a clínica no dia seguinte entre as oite e as catorze, horário mais do que conveniente para quem se estiver a esvair em sangue. Na realidade, aqui deixo expressa a minha fiel conviccao de que considero um despropósito alguém padecer do que quer que seja numa sexta-feira a seguir ao almoco.
O descanso e a paz é algo que estas gentes muito prezam e, a meu ver, é uma das bases fundamentais para o sucesso económico do país. Isso de trabalhar sexta da parte da tarde é coisa para países subdesenvolvidos do sul da Europa, segundo ouvi dizer.
Após um período de recobro de dois dias em que me tentei alimentar a puré de batata e boioes de comida para bebés, resta-me agora a satisfacao de saber que nao me irao arrancar mais nenhum dos danados dentes do ciso, até porque já nao tenho mais nenhum.
Nada!
Uma cárie, uma qualquer infeccao digna de um episódio dos Ficheiros Secretos ou até uma possível periodontite num futuro mais ou menos próximo.
Nada!
Impecável, disse a dentista.
Num momento em que já me encontrava numa género de euforia interior como há muito tempo nao vivia pronto para uma celebracao sem antecedentes, eis que me olha no fundo dos meus olhos e lanca um: pode entao ir arrancar o dente do ciso, assim como quem nao quer a coisa.
Num cartao escreveu-me uma recomendacao de um colega e lá fui eu, qual alma penada, marcar uma consulta para proceder a mais um episódio da minha traumática experiencia com a cremalheira (como em Grandola simpaticamente se referiam ao conjunto de estruturas esbranquicadas que se encontram na boca a fim de nos facilitarem o processo digestivo).
Chegado o dia as maos suavam-me de forma desmesurada, mesmo apesar das temperaturas negativas que se abateram sobre Hamburgo nestes últimos tempos. O meu coracao ameacava parar a qualquer momento em virtude das suas abusivas taquicardias. As pernas tremiam-me que nem as do Veloso antes da marcacao do pénalti na final de 88 ante o PSV.
Chegado ao belo edifício modernista exclusivamente dedicado a consultórios médicos, lá me dirigi à recepcao. Uma senhora dos seus cinquenta anos passou-me para a mao um extenso questionário sobre os meus mais diversos hábitos e doencas. Devo dizer que a mais ligeira constipacao assume em alemao contornos de algo capaz de nos levar para a tumba sem pestanejar.
Preenchido o questionário, uma simpática menina que se revelou incapaz de pronunciar o meu nome lá me arrastou para a fatal sala onde, ò Deus, a minha boca seria submetida a atrocidades cujos pormenores vos pouparei.
A minha confianca nao aumentou quando me apercebi que a dita cuja era uma estagiária que revelou certa dificuldade em abrir o pacote esterilizado com os instrumentos da tortura que se iria seguir. Ao me perguntar se estava tudo bem comigo, nao se coibiu de levantar os polegares ao jeito de Circo Romano. Apesar do meu intenso desejo de os inverter apontando para o chao, limitei-me a tentar sorrir de forma a tranquilizá-la.
- O doutor já vem - disse-me.
Dez minutos depois eis que aparece o carniceiro. Enquanto me dava anestesia avisou-me que iria sentir uma pica numa total falta de coordenacao temporal pois já a estava a sentir como a alguém a quem muito quero. Dada a anestesia, tornou a abandonar a sala, voltando-me a deixar sozinho com a rapariga que parecia agora estar em puro sofrimento qual Teresa de Ávila face às suas místicas revelacoes.
Incapazes de falar um com o outro, deixei que a anestesia fizesse efeito, esperando mesmo que ele se tivesse enganado e me tivesse dado uma dose suficiente para me fazer adormecer deixando-me num estado pré-comatoso.
Infelizmente nao se enganou e passado um bocado lá voltou a surgir. Atirou-me uma toalha para o rosto e sem pudor cortou-me a gengiva e arrancou-me o dente à bruta num processo que nao demorou mais do que dois minutos.
- Leia as instrucoes no folheto que lhe vao dar e um bom resto de dia.
E assim se foi embora sem que tivesse tempo de me fixar na cara do meu cruel carrasco.
Já a minha pessoa ficou atordoada com um papel na mao onde consegui decifrar que em caso de problemas poderia voltar a ligar para a clínica no dia seguinte entre as oite e as catorze, horário mais do que conveniente para quem se estiver a esvair em sangue. Na realidade, aqui deixo expressa a minha fiel conviccao de que considero um despropósito alguém padecer do que quer que seja numa sexta-feira a seguir ao almoco.
O descanso e a paz é algo que estas gentes muito prezam e, a meu ver, é uma das bases fundamentais para o sucesso económico do país. Isso de trabalhar sexta da parte da tarde é coisa para países subdesenvolvidos do sul da Europa, segundo ouvi dizer.
Após um período de recobro de dois dias em que me tentei alimentar a puré de batata e boioes de comida para bebés, resta-me agora a satisfacao de saber que nao me irao arrancar mais nenhum dos danados dentes do ciso, até porque já nao tenho mais nenhum.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2016
Proud
Today I had my last class at a course in a school in Eppendorf (Hamburg) with a group of primary school students.
After a semester full of good experiences with particularly brilliant kids, I´ve decided to try my "new toy" and tell one story with a shadow theatre. After I´ve done it, the group has refused to leave their places and asked for another one. And so I did.
After that they have asked me whether I would explain them how the whole thing works. No more than five minutes were needed till I got some precise instructions that I should give them ten minutes on their own so that they would find out a story and present it to me.
Leaving the room I couldn´t control my growing expectation towards what was to come.
When I got back inside the room, they've ordered me to lay on the fluffy carpet of the library so that I would see the story on the ceiling, just as they have done before during my presentations.
This was the result:
For those who don't speak german here goes a brief summary: this was a normal city where a thief has always waited for midnight to rob people´s houses and shops. But there was a sleepwalking lady who has managed to get him and took him to the town´s judge who has made him ask for sorry.
More than the story in itself, it was the wonderful humour of the whole presentation which made me feel proud and tremendously happy to see it.
In the beginning they start presenting some of the people who lived in the city, starting by the President Lady and the President Man, as women should always come first ( as I was latter told).
There´s a moment where the kids didn´t know where they have put the puppet they needed so they have just decided to put an airplane flying around as it is always something nice to see. From the school it is always possible to see airplanes preparing to land at Hamburg´s airport.
Another one is how the sleepwalking lady suddenly changes her clothes as soon as she wakes up and gets the robber, because everyone know that it is silly to walk around in pijamas, or so have they told me in the end of the story.
I have to admit that after ten years telling stories in the most different contexts, it is moments like this that make me keep on. Thanks kids for making me smile and believe in the power of stories!!
Last, but not the least, I have to confess my admiration for Jeff Gere´s work, which has arisen my curiosity and fascination for this way of telling stories. Thanks Jeff!!!
After a semester full of good experiences with particularly brilliant kids, I´ve decided to try my "new toy" and tell one story with a shadow theatre. After I´ve done it, the group has refused to leave their places and asked for another one. And so I did.
After that they have asked me whether I would explain them how the whole thing works. No more than five minutes were needed till I got some precise instructions that I should give them ten minutes on their own so that they would find out a story and present it to me.
Leaving the room I couldn´t control my growing expectation towards what was to come.
When I got back inside the room, they've ordered me to lay on the fluffy carpet of the library so that I would see the story on the ceiling, just as they have done before during my presentations.
This was the result:
For those who don't speak german here goes a brief summary: this was a normal city where a thief has always waited for midnight to rob people´s houses and shops. But there was a sleepwalking lady who has managed to get him and took him to the town´s judge who has made him ask for sorry.
More than the story in itself, it was the wonderful humour of the whole presentation which made me feel proud and tremendously happy to see it.
In the beginning they start presenting some of the people who lived in the city, starting by the President Lady and the President Man, as women should always come first ( as I was latter told).
There´s a moment where the kids didn´t know where they have put the puppet they needed so they have just decided to put an airplane flying around as it is always something nice to see. From the school it is always possible to see airplanes preparing to land at Hamburg´s airport.
Another one is how the sleepwalking lady suddenly changes her clothes as soon as she wakes up and gets the robber, because everyone know that it is silly to walk around in pijamas, or so have they told me in the end of the story.
I have to admit that after ten years telling stories in the most different contexts, it is moments like this that make me keep on. Thanks kids for making me smile and believe in the power of stories!!
Last, but not the least, I have to confess my admiration for Jeff Gere´s work, which has arisen my curiosity and fascination for this way of telling stories. Thanks Jeff!!!
sexta-feira, 18 de setembro de 2015
Viajar
Viajar. Conhecer
novos mundos, alimentar a ilusão de que poderia ser feliz numa qualquer outra
vida num qualquer outro lugar. Apaixonar-me perdidamente e sentir uma
incontrolável alegria apenas pelo facto de estar vivo e sentir que existo
dentro de uma qualquer ficção. Minha. Pessoal. Transmissível a todo um conjunto
de pessoas que, de uma maneira ou outra, vivem as minhas viagens no usufruto
mais ou menos intenso das minhas palavras. A cada uma das pessoas que narro uma
viagem, algo muda. A narrativa nunca é igual, numa infatigável procura de
conseguir corresponder às expectativas dos olhos que me fitam. Assim reviajo.
Revivo experiências e vidas tornando-as de certa forma imortais nesse
imaginário interminável que costuma responder quando o nome que ostenta o meu
bilhete de identidade é proferido em voz alta.
Mas há um outro
lado.
Habita em mim um
receio de que cada nova viagem seja nada mais do que a última. Um pássaro que
se resolve violentamente suicidar contra as turbinas do avião que me comporta
as ossadas no momento de levantar voo. Um comboio que descarrila depois de ter
destroçado por completo o corpo de um qualquer suicida que resolveu
generosamente partilhar a sua morte com mais ou menos inocentes passageiros. Um
condutor de autocarro que não se poupou nos copos de tinto a fim de conseguir
viver com a inevitabilidade que depois de amanhã ainda haverá dia, mais viagens
e contas para pagar. Assim resvalarei Arrábida abaixo. Da mesma forma que já
resvalei em sonhos para baixo de um carro, incapaz de controlar a minha
calorosa bicicleta num qualquer dia de chuva em Hamburgo. Ou espero sine die
receber uma bala transviada ao sair de casa no preciso momento em que o meu
nariz efectua uma minuciosa análise dos níveis de pólen existentes no ar.
Macabro? Talvez.
Mas viajar implica
para mim um risco infinito que é nada mais do que uma outra expressão dessa
experiência ao mesmo tempo aterradora e fascinante que é viver.
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