Em Outubro do ano passado comprei Slow Man de Coetzee, na esperança de que ele me acompanhasse de forma fiel no périplo por terras indianas. Contudo, não o li. Ao chegar a Mumbai encantei-me com outras leituras e ele foi reposto na prateleira assim marcando de forma indelével o meu regresso a terras germânicas.
Meses se passaram e com a vinda do novo ano e as inevitáveis neves de Fevereiro, espaldei-me com algum espalhafato de bicicleta. Cinco dias no UKE (hospital universitário aqui do burgo), uma anestesia geral, placas de titânio na boca e uma semana de retoma gradual dos mais normais hábitos de existência humana (andar, vociferar contra velhinhas, ir às compras e beber chá, entre outras), eis que parti rumo a Barcelona e à eternamente bela zona do Vallés. Contei estórias, bebi inspiração junto de quem sabe e o faz com uma mestria e paixão únicas, vagabundeei e nos mais variados sítios vi-me obrigado a contar com mais ou menos sórdidos pormenores a forma como ia deixando a mandíbula presa num poste em terras frias de forma a conseguir a compaixão necessária que me permitisse que alguma alma caridosa numa cozinha mais ou menos encoberta me triturasse a comida de forma a que eu a pudesse deglutir de forma sofrida e assim obter a energia que me permitisse continuar a viver. Recebi ora olhares compadecidos, ora de troça, mas sempre um desejo mais ou menos sincero de melhoras acompanhado de comidas com as mais diversas cores mas com uma só textura.
Semana volvida lá rumei a Portugal de forma a revisitar sensações, aí aprendendo que favas trituradas até que pode ser um belo petisco ou que as alheiras se podem comer sem ser mastigadas. As estórias voltaram a acompanhar os meus passos e vivi momentos de singela beleza difíceis de descrever, porventura por causa dessa coisa que muitas vezes nego e que às vezes surge arrasadora e a que se chama de saudade.
Depois de um intento de partida negado pelos controladores aéreos franceses que me obrigaram a ficar mais um par de dias a usufruir de sol, boa companhia e boa comida, lá regressei a Hamburgo, enfrentando o céu cinzento algo revigorado.
E foi no pleno desse vigor que decidi avançar sem medos para a experiência de comer fora. Opção: restaurante indo-italiano aqui na vizinhança dos meus aposentos. Tendo em conta a substancial molhanga com que a maioria dos pratos indianos são servidos, pensei que seria relativamente fácil triturarem-me o seu recheio.
Nada mais falso.
À desagradável estranheza da empregada, seguiu-se a do dono que se recusou a fazê-lo afirmando que iria perder o sabor original. Expliquei novamente que me encontro condicionado uma vez que não consigo mastigar e que não me importava de comer um sabor diferente e pagar o mesmo preço por ele.
- Porque é que não come esparguete?
- Porque não consigo mastigar, querido - respondi de forma ternurenta como quem se apronta para lhe dizer das boas.
- Pois assim não estou a ver o que pode comer aqui. Pode-se ir embora, que não tem problema.
Sem o olhar e com a convicção de jamais lá voltar, lembrei-me subitamente que nesse mesmo dia tinha acabado de ler o Slow Man do Coetzee onde o escritor sul-africano descreve os sofrimentos e contrariedades de um homem que teve justamente um acidente de bicicleta.
Tivesse eu lido o livro em Outubro do ano passado e já saberia que nem toda a gente se compadece do azarismo alheio.
Compreende que para isso é preciso mestria, ser-se imaginativo, artista mesmo. Mas é preciso também compaixão e amor pelo próximo, ser capaz de se pôr no lugar do outro. E isso vai faltando. Não é por nada mas comprovei a minha veia de artista, a de enfermeira, comprovei como posso reinventar tudo: desde umas moelas até uma sopa da pedra! Modéstia à parte...
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