Achando que esta ameaça de primavera em Hamburgo já começava a ser demais, resolvi procurar o já saudoso inverno numa ilha chamada Förth. Localização: norte, já perto da Dinamarca.
Os autóctones quase que falam alemão, pese embora haja uma clara predominância de expressões de origem duvidosa como é o caso de um certo "moin, moin"* levemente cantado. Prova da estranheza deste idioma é o facto de ser capaz de fazer as pessoas sorrir quando se saúdam.
Sendo uma ilha perfeitamente explorável ao alugar-se uma bicicleta por 5€/dia, lá o fiz sentido na pele o que terão passado o Serpa Pinto e o Capelo e Ivens nas suas explorações africanas. A incerteza do que iria encontrar foi constante e sempre duvidei se estaria preparado para o que encontrasse. Mas a adrenalina é capaz de coisas extraordinárias!
Vencendo um forte e constante cheiro a excrementos de ovelha e de cavalo que controlam a ilha lá me lancei à exploração e descoberta de pequenas aldeias onde, entre cafés simpáticos e casas dignas de hobbits (telhados de palha e consideravelmente baixas), me deparei com o principal objecto deste relato: um café onde a palavra Kitsch não tem poder suficiente para o descrever.
Se bem que seja comum à maioria das pessoas que vivem à beira-mar uma certa tendência para se deixarem levar pelos demónios do kitsch (âncoras, representações de gaivotas, personagens algo parecidas com o Capitão Haddock a espreitarem pelos mais diversos sítios e os mais variados modelos de barcos por todo o lado), o sítio que vos vou descrever em seguida ultrapassa qualquer realidade ou a mais negra das fantasias.
Alte schule, ou Escola Velha na nossa boa língua latina, está numa encantadora aldeia de nome impronunciável onde as ruas são limpas e as pessoas sorridentes. Passando um pequeno portão onde há um aviso para ter cuidados com as mini-galinhas que podem fugir ou ser pisadas a qualquer instante, entra-se num jardim onde começam a surgir as primeiras réplicas de anjos barrocos. Nada que assuste um explorador do meu calibre, pensei.
Mas na realidade eu não estava minimamente preparado para o que o interior da casa me reservava.
Mesas com nomes tão inspiradores quanto Mesa do Coração, Alice no País das Maravilhas ou Canto dos Ursinhos de Peluche fazem parte de toda um conjunto de parafernália que termina gloriosamente em duas arcas frigoríficas cheias de doces capazes de matar o mais resistente corredor de maratona numa questão de segundos. As verdadeiras montanhas de natas a envolverem fatias de bolo de chocolate e a proposta de beber um vulgo latte machiato com xarope de canela e dupla camada de natas causaram-me algum enjoo, confesso. Mas não foi esse enjoo tão grande quanto o sentido ao deparar-me com a empregada. Uma mulher nos seus cinquenta com um vestido cor de rosa onde o corpete a segurar o passar do tempo e as meias brancas de renda se aliavam de forma a produzirem uma das mais grotescas imagens que já me foi concedida ver nestes dias da minha vida. Claro está que o facto de ela dizer "aqui está o seu prazer" ao servir à mesa estas bombas não ajudou a melhorar todo este cenário dantesco.
Mas o melhor ainda estaria para vir.
Quando paguei recebi em troca um coraçãozinho de feltro para que me recordasse eternamente daquele lugar.
Na realidade, não tinha sido necessário tanto trabalho. Com ou sem coraçãozinho sempre me irei recordar dele.
* Expressão equivalente ao mais comum e aceite Guten morgen
segunda-feira, 29 de abril de 2013
terça-feira, 23 de abril de 2013
Fumaças literárias
Neste Dia Mundial do Livro decido-me a escrever sobre uma das coisas que faz tempo acompanha as minhas leituras: o narguilé.
Parece piada. Não o é. A junção dos dois é para mim quase tão perfeita que às vezes consigo até marcar quantos terei fumado durante um livro. O Baudolino, que estou preste a terminar, vai com sete. A maioria das pessoas marca o tempo que demorou a ler um livro. Eu marco-o com narguilés.
Quase consigo precisar no tempo a primeira vez.
Foi na cave do épico 222 ali pelo Saldanha que fui confrontado pela primeira vez com tão deliciosa mistura. Os tempos eram outros. Eu nunca tinha pago irs. Apesar de ter começado a pagá-lo e das voltas que a vida me tem dado, muitas foram as vezes que voltei mesmo tendo a minha pequena colecção privada de narguilés. Se por um lado havia a simpatia do Nasser, por outro a natural decadência do lugar, ideal para longas horas de solidão foram factores determinantes para este meu regresso constante.
Outros lugares houve que me marcaram em especial: em Istambul rodeado de velhos que discutiam futebol (só podia ser futebol graças à forma apaixonada como berravam entre eles), em Urmia entre contadores de estórias e clientes admirados com tal presença de comitiva internacional ou em Cáceres numa antiga cave de vinhos remodelada ao gosto marroquino e com rumba a derramar-se pelos altifalantes.
Por Hamburgo, e apesar da grande comunidade turca aqui presente, confesso que nunca me senti particularmente entusiasmado a entrar em nenhum café de fumo. Todos eles têm ar de café mafioso russo: pouca luz, televisões gigantescas a transmitirem futebol, neons roxos do lado de fora e nomes tão atractivos como Shisha Palace ou Cocktail Shisha.
Contudo, no outro dia resolvi vencer todo este meu preconceito e lá me resolvi entrar num destes sítios a fim de vencer a hora que me restava de uma espera. De Baudolino na mão lá me encaminharam para uma mesa. Sofás confortáveis e uma música detestável. Num momento imaginei-me de volta a Magalluf rodeado de ingleses e alemães em plena adolescência a embriagarem-se como se não houvesse amanhã. Em meu redor havia uma mescla de clientes que ia desde jovens de véus a cobrirem-lhes por completo a cabeça até um grupo de Erasmus onde se destacava um espanhol que a cada dois minutos perguntava a um outro: Que dijo? Vaya mierda de idioma, el alemán!
Cumpri a minha hora com rigor espartano e um bom avanço baudolinistico. Não consegui esconder uma certa satisfação quando regressei ao ar livre e ao ruído agradável de comboios e carros junto à Estação Central (vulga Hauptbahnhof).
Hoje, quando terminar estas lides Ecoanas aqui por casa, marcarei possivelmente o oitavo.
Parece piada. Não o é. A junção dos dois é para mim quase tão perfeita que às vezes consigo até marcar quantos terei fumado durante um livro. O Baudolino, que estou preste a terminar, vai com sete. A maioria das pessoas marca o tempo que demorou a ler um livro. Eu marco-o com narguilés.
Quase consigo precisar no tempo a primeira vez.
Foi na cave do épico 222 ali pelo Saldanha que fui confrontado pela primeira vez com tão deliciosa mistura. Os tempos eram outros. Eu nunca tinha pago irs. Apesar de ter começado a pagá-lo e das voltas que a vida me tem dado, muitas foram as vezes que voltei mesmo tendo a minha pequena colecção privada de narguilés. Se por um lado havia a simpatia do Nasser, por outro a natural decadência do lugar, ideal para longas horas de solidão foram factores determinantes para este meu regresso constante.
Outros lugares houve que me marcaram em especial: em Istambul rodeado de velhos que discutiam futebol (só podia ser futebol graças à forma apaixonada como berravam entre eles), em Urmia entre contadores de estórias e clientes admirados com tal presença de comitiva internacional ou em Cáceres numa antiga cave de vinhos remodelada ao gosto marroquino e com rumba a derramar-se pelos altifalantes.
Por Hamburgo, e apesar da grande comunidade turca aqui presente, confesso que nunca me senti particularmente entusiasmado a entrar em nenhum café de fumo. Todos eles têm ar de café mafioso russo: pouca luz, televisões gigantescas a transmitirem futebol, neons roxos do lado de fora e nomes tão atractivos como Shisha Palace ou Cocktail Shisha.
Contudo, no outro dia resolvi vencer todo este meu preconceito e lá me resolvi entrar num destes sítios a fim de vencer a hora que me restava de uma espera. De Baudolino na mão lá me encaminharam para uma mesa. Sofás confortáveis e uma música detestável. Num momento imaginei-me de volta a Magalluf rodeado de ingleses e alemães em plena adolescência a embriagarem-se como se não houvesse amanhã. Em meu redor havia uma mescla de clientes que ia desde jovens de véus a cobrirem-lhes por completo a cabeça até um grupo de Erasmus onde se destacava um espanhol que a cada dois minutos perguntava a um outro: Que dijo? Vaya mierda de idioma, el alemán!
Cumpri a minha hora com rigor espartano e um bom avanço baudolinistico. Não consegui esconder uma certa satisfação quando regressei ao ar livre e ao ruído agradável de comboios e carros junto à Estação Central (vulga Hauptbahnhof).
Hoje, quando terminar estas lides Ecoanas aqui por casa, marcarei possivelmente o oitavo.
terça-feira, 16 de abril de 2013
Abutrismo livreiro
Se há coisa que não consigo resistir é a uma banca de livros. Não há feira da ladra ou feira do livro usado onde não me debruce à procura daquela oportunidade única de encontrar o negócio do século fazendo-me valer do despreço alheio pela leitura. A típica posição de leve inclinação ou de joelhos à volta de caixas enchendo os dedos de um pó espesso ocupa já uma parte significativa da minha vida logo a seguir à de dormir e à de sentado a uma mesa a comer.
Talvez seja esta uma consequência directa dos anos de biblioteca ou dos ainda maior anos de certa penúria financeira ou de pura e simples cromice literária. E de que forma celebro quando alcanço um qualquer feito notável! Não consigo deixar de sorrir durante um dia inteiro ao conseguir a obra completa do William Carlos Williams por 2€ ou os melhores contos do Alejo Carpentier por 1€. Isso pode ser comprovado neste post.
Contudo, no outro dia fui acometido por uma certo e profundo sentimento de tristeza.
Ao caminhar pelas ruas de Copenhaga, o mais barato que consegui comprar foram livros. Um velho alfarrabista num espaço verdadeiramente apaixonante estava a vender ao desbarato o que restava das suas colecções antes de fechar a livraria por completo. Cada livro estava a ser vendido por menos de 1€. Um café em Copenhaga custa cerca de 4€.
O livreiro ostentava um certo ar de profunda melancolia enquanto via os abutres (entre os quais me incluí) à procura das melhores carcaças entre os restos mortais.
E Lisboa veio-me de novo à memória. Antes de deixar a cidade e vir para estas terra germânicas que albergam as minhas ossadas resolvi ir à Barateira fazer a minha despedida. Despedi-me sozinho e em choque com o seu fecho.
No outro dia e já por estas terras hamburguesas, andava por uma loja de segunda mão à procura de mesas de cabeceira aqui para casa quando me deparo com o facto de os livros serem gratuitos. Quem comprasse o que quer que fosse poderia levar os livros que quisesse sem que pagasse mais por isso.
Verdade que tenho que concordar com o Gabriel Zaid sobre o facto de haver livros a mais e leitores a menos, mas não consigo deixar de esconder uma certa tristeza ao ver este destino a tornar-se cada vez mais comum.
Num momento imaginei a amargura dos autores a verem os seus livros a serem tratados como lixo, o desespero de editores e livreiros ao verem que o que ganham não quase não é dinheiro e saber que chegada a época de grelhados ao ar livre, um livro é uma forma bem mais barata e eficaz de grelhar salsichas ou sardinhas.
Talvez seja esta uma consequência directa dos anos de biblioteca ou dos ainda maior anos de certa penúria financeira ou de pura e simples cromice literária. E de que forma celebro quando alcanço um qualquer feito notável! Não consigo deixar de sorrir durante um dia inteiro ao conseguir a obra completa do William Carlos Williams por 2€ ou os melhores contos do Alejo Carpentier por 1€. Isso pode ser comprovado neste post.
Contudo, no outro dia fui acometido por uma certo e profundo sentimento de tristeza.
Ao caminhar pelas ruas de Copenhaga, o mais barato que consegui comprar foram livros. Um velho alfarrabista num espaço verdadeiramente apaixonante estava a vender ao desbarato o que restava das suas colecções antes de fechar a livraria por completo. Cada livro estava a ser vendido por menos de 1€. Um café em Copenhaga custa cerca de 4€.
O livreiro ostentava um certo ar de profunda melancolia enquanto via os abutres (entre os quais me incluí) à procura das melhores carcaças entre os restos mortais.
E Lisboa veio-me de novo à memória. Antes de deixar a cidade e vir para estas terra germânicas que albergam as minhas ossadas resolvi ir à Barateira fazer a minha despedida. Despedi-me sozinho e em choque com o seu fecho.
No outro dia e já por estas terras hamburguesas, andava por uma loja de segunda mão à procura de mesas de cabeceira aqui para casa quando me deparo com o facto de os livros serem gratuitos. Quem comprasse o que quer que fosse poderia levar os livros que quisesse sem que pagasse mais por isso.
Verdade que tenho que concordar com o Gabriel Zaid sobre o facto de haver livros a mais e leitores a menos, mas não consigo deixar de esconder uma certa tristeza ao ver este destino a tornar-se cada vez mais comum.
Num momento imaginei a amargura dos autores a verem os seus livros a serem tratados como lixo, o desespero de editores e livreiros ao verem que o que ganham não quase não é dinheiro e saber que chegada a época de grelhados ao ar livre, um livro é uma forma bem mais barata e eficaz de grelhar salsichas ou sardinhas.
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Da beleza poética das viagens de comboio
Um dos sítios onde o germânico hábito de atropelar pessoas mais se faz notar é nas estações de comboio. A forma como estes amigáveis e civilizados portentos da natureza se empurram e passam à frente a fim de conseguir garantir um bom lugar sentado é qualquer coisa de inexplicável. Muitos serão até capazes de ver pequenos laivos poéticos semelhantes aos do rebentar da bomba atómica.
O bonito e singelo episódio que aqui vos vou relatar passou-se na sexta-feira santa.
Sendo feriado antes de fim de semana alargado, creio que se encontravam reunidas todas as condições para um momento de violência eterna capaz de figurar nos anais da história como o célebre caso da antiga ponte das barcas na nossa Invicta cidade do Porto.
Levado na loucura da Estação Central de Hamburgo, lá consegui encontrar lugar sentado, perante o olhar meio invejoso de meia dúzia de cidadãos que, com certeza, bem me desejariam crucificar apenas para sentirem um pouco mais intensamente o espírito da época.
Depois de ter trocado de comboio em Uelzen, estação cuja ineficácia no escoamento de pessoas faz a Estação do Oriente parecer um paraíso na terra, consegui arranjar lugar junto a uma das portas que separam as carruagens. Com as malas a partilharem carinhos com a de todos os outros passageiros, eis que me deparo com um grupo de três simpáticos ogres que se sentaram mesmo à minha frente.
Dois homens de barrigas esféricas a fazerem inveja a qualquer grávida de trigémeos e uma outra criatura que suspeito que já tenha sido uma mulher.
Assim que se sentaram vai de sacar de uma bela garrafinha de plástico repleta de um belo e inebriante líquido. Depois de consumida a garrafa, cada qual se fez munir do seu six-pack de Astras de meio litro para acompanhar o resto da viagem. Gente prevenida é logo outra coisa, pensei. O tom de voz com que vociferavam faria corar um qualquer tuberculoso de Verdi. Daí a plenas demonstrações de simpatia para com os outros passageiros foi um passinho. A qualquer pessoa que esperasse que a porta se fechasse automaticamente, saíam uns piropos engraçados e intraduzíveis nesta nossa latina linguagem. Houve até um momento épico em que um deles ficou entalado na tal de porta automática quando a porta se fechou sobre o seu esférico a que alguns poderiam chamar de barriga.
Quando a viagem terminou pensei que talvez sido por causa destas e doutras que Cristo tinha decidido morrer numa sexta-feira.
Depois de uma Páscoa repleta de salsichas e schnapps lá regressei às aventuras de comboios e qual não é o meu espanto quando vejo o mesmo trio a subir o comboio e a sentar-se, sim, mesmo à minha frente.
Escusado será dizer que a viagem de regresso a Hamburgo foi um miminho e um abre-olhos para a realidade de que Cristo ressuscitou mas não quis ficar por cá.
O bonito e singelo episódio que aqui vos vou relatar passou-se na sexta-feira santa.
Sendo feriado antes de fim de semana alargado, creio que se encontravam reunidas todas as condições para um momento de violência eterna capaz de figurar nos anais da história como o célebre caso da antiga ponte das barcas na nossa Invicta cidade do Porto.
Levado na loucura da Estação Central de Hamburgo, lá consegui encontrar lugar sentado, perante o olhar meio invejoso de meia dúzia de cidadãos que, com certeza, bem me desejariam crucificar apenas para sentirem um pouco mais intensamente o espírito da época.
Depois de ter trocado de comboio em Uelzen, estação cuja ineficácia no escoamento de pessoas faz a Estação do Oriente parecer um paraíso na terra, consegui arranjar lugar junto a uma das portas que separam as carruagens. Com as malas a partilharem carinhos com a de todos os outros passageiros, eis que me deparo com um grupo de três simpáticos ogres que se sentaram mesmo à minha frente.
Dois homens de barrigas esféricas a fazerem inveja a qualquer grávida de trigémeos e uma outra criatura que suspeito que já tenha sido uma mulher.
Assim que se sentaram vai de sacar de uma bela garrafinha de plástico repleta de um belo e inebriante líquido. Depois de consumida a garrafa, cada qual se fez munir do seu six-pack de Astras de meio litro para acompanhar o resto da viagem. Gente prevenida é logo outra coisa, pensei. O tom de voz com que vociferavam faria corar um qualquer tuberculoso de Verdi. Daí a plenas demonstrações de simpatia para com os outros passageiros foi um passinho. A qualquer pessoa que esperasse que a porta se fechasse automaticamente, saíam uns piropos engraçados e intraduzíveis nesta nossa latina linguagem. Houve até um momento épico em que um deles ficou entalado na tal de porta automática quando a porta se fechou sobre o seu esférico a que alguns poderiam chamar de barriga.
Quando a viagem terminou pensei que talvez sido por causa destas e doutras que Cristo tinha decidido morrer numa sexta-feira.
Depois de uma Páscoa repleta de salsichas e schnapps lá regressei às aventuras de comboios e qual não é o meu espanto quando vejo o mesmo trio a subir o comboio e a sentar-se, sim, mesmo à minha frente.
Escusado será dizer que a viagem de regresso a Hamburgo foi um miminho e um abre-olhos para a realidade de que Cristo ressuscitou mas não quis ficar por cá.
Subscrever:
Mensagens (Atom)