Depois de ter abandonado Hamburgo com amenas temperaturas a rondarem os quinze graus e chuva (coisa típica do verao destas bandas) e ter aterrado em Madrid com trinta e oito e nem sombra de nuvens nos caminhos a percorrer, comecei a cumprir as minhas tradicionais peregrinacoes sempre que estou naquelas bandas.
Para além dos sítios turísticos e das obrigatórias paragens para ocasionais refrescos e respectivo tapeo, há uma pequena rua junto à Atocha à qual me dirijo há anos como um fiel peregrino. Na Cuesta de Moyano há pequenos quiosques com livros em segunda mao que desde sempre alimentaram a minha sede de cosneguir a um módico preco livros há muito esgotados ou descatalogados.
Ora estando eu inclinado sobre o hecatombico Un Buen Partido do senhor Vikram Seth e meditando sobre a sua eventual compra, eis que escuto uma voz soturna atrás de mim:
- Le gustaría saber cuando va a morir?
O dono do quiosque tinha resolvido encetar uma agradável conversacao, possivelmente impressionado pelas 1423 páginas do tomo que me comecava desde já a danificar os pulsos*.
- Ah, na realidade nao. Quando acontecer, aconteceu. - respondi eu de forma melódica enquanto ponderava sobre os efeitos nocivos do sol das 15 horas de Madrid.
- Pois eu sim, respondeu o dono do quiosque. Mas enfim. Falemos entao de política, e a seguir comecou a descorrer sobre os problemas de nomeacao de governo e a desevolucao política do PSOE nos últimos anos.
Quando me afastei, com o tal tomo do Vikram Seth e um livro de contos sobre cidades, tinha o coracao cheio do calor de ter tido uma bela discussao ideológica capaz de mudar o rumo existencial de milhoes de pessoas.
Uma semana mais tarde, eis que me vejo sentado num dos casticos cafés que refletem a fachada da Campanha, no Porto. Pedindo uma merenda, eis que me deparo com o ar estupefacto do empregado que, sem hesitar, dá início a um virtuosismo de palavreado que tentarei reproduzir com a maior fidelidade:
- Ora bem, o senhor deseja, portanto, um folhado com fiambre e queijo, ou um outro mais compacto com chouricao e também queijo, por assim dizer?
- A segunda possibilidade, disse eu sem titubear, resistindo a tamanho verbialismo.
- Refere-se, portanto, o senhor, ao lanche, se bem me é dado entender.
- Porventura.
- Esta gente vem para aqui falar em estrangeiro e um gajo que se desenrasque! A sorte é que já tenho experiencia neste ramo!
Quando veio com o pedido, nao hesitou em perguntar bem alto a quem é que dava uma pera, referindo-se ao compal de pera que tinha pedido.
Em seguida poe-me a mao no ombro e comeca-me a contar que vive com uma mulher quinze anos mais velha e que ela cumpriu agora os 61 e que continua a amá-la como no primeiro dia e o que importa na vida é ser feliz. Tomado o pequeno-almoco, agradeci as palavras e apanhei o comboio rumo a Santarém com o coracao um pouco mais quente.
De regresso à Alemanha e também no comboio que parte de Hamburgo já com relativo atraso, eis que o motorista faz soar a sua voz nos altifalantes do comboio:
- Senhores passageiros, o nosso comboio sofrerá um atraso ainda maior por causa de um passageiro em cadeira de rodas que quer entrar.
Mais tarde, chega-nos a voz da revisora:
- Senhores passageiros, se querem que o nosso comboio recupere um pouco do atraso que tem, pede-se o favor de utilizarem uma das quinze portas deste comboio e nao apenas uma. Saiam de forma ordenada e rápida, se faz favor!
Nada como utilizar os ineficazes servicos da Deutsche Bahn para me deixar de ditos e encontros transcendentes de índole ibérica.