É possível escrever um obituário a
alguém que ainda está vivo?
No meu início de adolescência vi-me a
trocar de escola por mero capricho latinista. Como sempre acontece
nessa tenebrosa fase da nossa vida há lágrimas e abraços, beijos
fugazes e promessas de amizade eterna, como se mudar de escola em
Santarém fosse aventura apenas comparável com a segunda expedição
do Bartolomeu Dias em torno do Bojador.
Claro está que assim aconteceu com o
meu melhor amigo da altura. Mas ficava a promessa de continuarmos a
ver-nos, até porque ele morava a pouco mais de 500 metros de
distância e mesmo em frente ao campo de futebol onde nas tardes de
sábado eu demonstrava veementemente que a minha carreira desportiva
bem se poderia resumir a coleccionar cromos da Panini.
As noites de sexta começaram a ser
passadas em conjunto para partilharmos as aventuras da semana.
Invariavelmente eu ia até casa dele pois sempre tive culito
inquieto. Mas as diferenças entre nós começaram a se agudizar. Eu
a achar que era de bom tom ler Nietzsche aos quinze anos e ele a
devorar jogos de computador (mais tarde viria a falhar redondamente o
primeiro ano de informática na Nova, mas passando com clara
distinção no SIMS e no FIFA) como se não houvesse amanhã.
As noites de partilha típicas da
adolescência sobre os atributos sexuais de todas as raparigas da
nossa turma e sobre as técnicas cada vez mais falíveis de as
conquistar foram sendo substituídas por demonstrações de perícia
em torno de um ecrã de computador onde o meu espaço ia sendo cada
vez menor.
E assim foi que o meu foco de atenção
se foi virando cada vez mais para a mãe dele.
Num pequeno escritório forrado a
livros onde a ténue luz de um candeeiro se parecia sempre ir
afogando entre as nuvens dos constantes cigarros lá estava ela a
ler. Sempre. Pouco a pouco fomos começando a conversar sobre livros.
De como era precipitado ler Nietzsche tão cedo, de como Kafka era
fascinante, de como às vezes a personalidade dos autores nada tinha
que ver com a qualidade do que escreviam e de como era possível
desassociar ambos.
Sem surpresa o tempo que me era
parentalmente reservado para as saídas de sexta começou a ser
passado naquele escritório entre conversas quase sempre
intermináveis. O meu amigo, aborrecido de morte, nem se dignava a
aparecer, comentando apenas à saída que estava em terceiro no
campeonato mas com cinco jogos a menos ou que tinha passado dois
níveis num qualquer jogo que tanto naquela altura como nesta em que
escrevo tinha um qualquer nome para mim impronunciável.
Cada vez com menos em comum e com uma
namorada que me achava um louco perigoso ao qual o destino tinha
reservado os prazeres de todos os males da humanidade fomo-nos
afastando cada vez mais. Eu ganhei o gosto de ler nos bares e de
sonhar acordado em frases que poderiam ser memoráveis e ele
continuou a vencer níveis na mais diversa gama de jogos. Foi
naturalmente que surgiu o dia em que deixámos de sentir necessidade
de falar um com o outro.
Com esta falta de necessidade morreu
também a figura da mãe dele, ficando apenas na memória o fumo em
torno dos livros que hoje repito enquanto sinto os meus olhos minguar
em torno de um pequeno vício maior do que todos os outros.
Talvez um dia, quando tenha filhos um
deles tenha um amigo que virá falar comigo nas sextas à noite sob a
luz de um candeeiro. Mas apenas talvez.