sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Obituário?



É possível escrever um obituário a alguém que ainda está vivo?
No meu início de adolescência vi-me a trocar de escola por mero capricho latinista. Como sempre acontece nessa tenebrosa fase da nossa vida há lágrimas e abraços, beijos fugazes e promessas de amizade eterna, como se mudar de escola em Santarém fosse aventura apenas comparável com a segunda expedição do Bartolomeu Dias em torno do Bojador.
Claro está que assim aconteceu com o meu melhor amigo da altura. Mas ficava a promessa de continuarmos a ver-nos, até porque ele morava a pouco mais de 500 metros de distância e mesmo em frente ao campo de futebol onde nas tardes de sábado eu demonstrava veementemente que a minha carreira desportiva bem se poderia resumir a coleccionar cromos da Panini.
As noites de sexta começaram a ser passadas em conjunto para partilharmos as aventuras da semana. Invariavelmente eu ia até casa dele pois sempre tive culito inquieto. Mas as diferenças entre nós começaram a se agudizar. Eu a achar que era de bom tom ler Nietzsche aos quinze anos e ele a devorar jogos de computador (mais tarde viria a falhar redondamente o primeiro ano de informática na Nova, mas passando com clara distinção no SIMS e no FIFA) como se não houvesse amanhã.
As noites de partilha típicas da adolescência sobre os atributos sexuais de todas as raparigas da nossa turma e sobre as técnicas cada vez mais falíveis de as conquistar foram sendo substituídas por demonstrações de perícia em torno de um ecrã de computador onde o meu espaço ia sendo cada vez menor.
E assim foi que o meu foco de atenção se foi virando cada vez mais para a mãe dele.
Num pequeno escritório forrado a livros onde a ténue luz de um candeeiro se parecia sempre ir afogando entre as nuvens dos constantes cigarros lá estava ela a ler. Sempre. Pouco a pouco fomos começando a conversar sobre livros. De como era precipitado ler Nietzsche tão cedo, de como Kafka era fascinante, de como às vezes a personalidade dos autores nada tinha que ver com a qualidade do que escreviam e de como era possível desassociar ambos.
Sem surpresa o tempo que me era parentalmente reservado para as saídas de sexta começou a ser passado naquele escritório entre conversas quase sempre intermináveis. O meu amigo, aborrecido de morte, nem se dignava a aparecer, comentando apenas à saída que estava em terceiro no campeonato mas com cinco jogos a menos ou que tinha passado dois níveis num qualquer jogo que tanto naquela altura como nesta em que escrevo tinha um qualquer nome para mim impronunciável.
Cada vez com menos em comum e com uma namorada que me achava um louco perigoso ao qual o destino tinha reservado os prazeres de todos os males da humanidade fomo-nos afastando cada vez mais. Eu ganhei o gosto de ler nos bares e de sonhar acordado em frases que poderiam ser memoráveis e ele continuou a vencer níveis na mais diversa gama de jogos. Foi naturalmente que surgiu o dia em que deixámos de sentir necessidade de falar um com o outro.
Com esta falta de necessidade morreu também a figura da mãe dele, ficando apenas na memória o fumo em torno dos livros que hoje repito enquanto sinto os meus olhos minguar em torno de um pequeno vício maior do que todos os outros.
Talvez um dia, quando tenha filhos um deles tenha um amigo que virá falar comigo nas sextas à noite sob a luz de um candeeiro. Mas apenas talvez.