De todos os momentos que marcam a rotina aqui do albergue há um que aprecio particularmente: quando toda a gente abandona a casa rumo à cidade e um silêncio sepulcral apenas quebrado pelo queda das bátegas de humidade no fundo do poço se faz imperar.
É claro que também se tem que contar com a música do senhor da cave que faz tremer o chão e os carros que são apitados violentamente, revelando verdadeiro desespero perante o olhar curioso da brigada dos bêbedos do Alves que comenta de forma serena se o carro pertencerá a alguém a almoçar no referido estabelecimento.
Tirando isto, impera um silêncio sepulcral.
Preparo um chá. Preparo o narguilé. Preparo um livro. Preparo o cadeirão.
Sento-me e desfruto.
Se perfeição houvesse, esta seria a sua imagem de marca.
Pois estava eu num alto patamar da perfeição a passar os meus olhos sobre o mais recente trabalho do Murakami e a experimentar um delicioso Alfakher turco sem tabaco quando alguém toca à porta.
Quem raios se atreve a violar este meu sagrado momento?, pensei eu.
Abro a porta. Um jovem com cabelo a imitar a vida do Cristo e um olho para cada lado.
Oi, tenho uma reserva para este hostal mesmo. Johnies Place. É.
Olho de soslaio como quem já pressente um cheirinho a esturro. Ideia nenhuma de receber pessoas naquele dia. Mesmo assim, deixei-me levar pelo mapa de marcações. Nada. Verifiquei nos sites de reservas. Nada.
Lamento, disse. Não tenho nenhuma reserva com o teu nome.
Ah, mas se tenho até papel.
Quando mo mostrou descobri que tinha feito a reserva para o dia correcto. O mês é que não.
Evitei fazer piadas como: Ah, foi o mês ao lado, a fim de evitar comparações com a vesguice do rapaz.
Depois de ter ido conhecer esta bela e única Lisboa onde nunca se sabe quando é que um prédio nos pode cair em cima, eis que regressa com ar meio estupefacto.
Você acredita que perdi a minha carteira?
Acredito, sim. Que tinhas lá dentro?
Ah, tudo. Dinheiro, documento, identificação, contactos, tudo.
Depois de lhe ter indicado a localização precisa e exacta da polícia turística, lá o despachei com um alemão chato como a porra.
Quando regressou tinha um sorriso estampado na cara dizendo que no preciso momento em que estava a apresentar queixa lhe apareceu um polícia com a carteira. Oba, qui bommm. Nossa!
De sorriso estampado, arrumou as suas coisas e partiu rumo a Aveiro.
Ou isso achava eu.
Passado uma hora, toca de novo à porta.
Oi, esqueci minha pasta com os bilhetes... Sorte que só vou ficar 10 dias na Europa e a cabeça 'tar grudada no corpo.
Se alguém encontrar um corpo de um jovem brasileiro perdido numa qualquer cidade dessa Europa, por favor enviem de volta ao seu país a pagar no destino.