quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

As ilhas alemãs

Em conversa com o mais visitador dos vizinhos o termo "ilhas" acabou por ser cunhado para definir a nova geração de alemães.
Como qualquer boa sociedade desenvolvida, o culto do eu e do individualismo foi elevado a um alto nível de consumo onde cada um sabe perfeitamente o que quer, evitando-se ao máximo o humano contacto de se ser aconselhado (e outros).
A possibilidade de se ter exactamente aquilo que se quer entregue em casa e na maioria dos casos sem custos adicionados, faz com que haja quase tantos serviços de entrega de comida ao domicílio quanto adeptos do Nacional da Madeira. A empresa de entregas DHL tem uma carrinha a tempo inteiro apenas para a rua onde se encontra o tasco ( a rua terá, talvez, a extensão da Avenida da Liberdade em Lisboa), para além das outras que fazem serviços "extraordinários". Claro está que há mais uma boa meia dúzia de outras empresas que dia após dia percorrem a rua de pacotes na mão. A fim de manter o nível competitivo a que todos ambicionamos e que fazem da Alemanha uma das mais fortes economias mundiais, estes funcionários não têm direito a salário fixo, mas a uma comissão por cada pacote entregue.
Durante um tempo aceitei receber os pacotes das pessoas que não estavam em casa aqui no tasco. A média diária era de cerca de 10 pacotes e as pessoas que os vinham levantar costumavam-me tratar como servente e não como um simpático vizinho que aceitou o pacote evitando-lhes a chatice de fazerem quase dois quilómetros para o irem levantar.  Escusado será dizer que já não aceito mais encomendas aqui.
A filha do supracitado vizinho abriu uma pequena livraria num dos mais fascinantes museus de Hamburgo e viu-se obrigada a fechar a partir do momento em que se recusou começar a vender pela internet. Na realidade, a capacidade dos alemães se deixarem surpreender ao entrarem numa livraria/biblioteca e deixar que um livro lhes surja à frente como algo apetecível e inesperado encontra-se reduzida a uns meros resistentes, quase todos da velha guarda.
Confesso que no outro dia, e pela primeira vez desde que aqui estou, entrei na biblioteca directamente ao local onde estava uma versão espanhola de O Cemitério de Praga do Eco. Já o tinha visto na minha anterior visita, mas um certo bom senso da minha capacidade leitora vs tempo fez com que adiasse a sua leitura por uma semana. Decidido avancei sem temor e ao chegar ao local que tinha mentalmente definido na minha cabeça dei com um espaço vazio. O desnorteio que se seguiu foi tal que cheguei a requisitar Alice Munro em espanhol, mesmo havendo uma versão em inglês disponível. Ri-me de mim mesmo, respirei fundo e deixei-me vaguear de novo pelas prateleiras recolhendo aquilo que me foi caindo à frente e me pareceu maduro, assim evitando a minha germanização.
Na biblioteca da Universidade não há contacto directo com os livros sendo que estes têm que ser pré-requisitados e levantados num prazo de oito dias ou assim.
Antes de terminar o café, o vizinho repetiu profeticamente o seu temor de que nos venhamos a tornar numa sociedade de ilhas onde cada um sabe cada vez mais o que quer, sabendo assim cada vez menos.

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