segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Gubin/Guben oder so

Em tempos tive a ambicao de escrever um pequeno conto sobre uma povoacao dividida entre dois países. Comecei, escrevi algumas linhas. Corrigi. Recorrigi. A ideia perseguiu-me de forma obsessiva chegando mesmo a causar-me insónias. As palavras que escrevia pareciam nunca conseguir exprimir o que sentia e, como sempre acontece nestes casos, acabei por o deixar cair entre raiva e frustracao, continuando, aqui e ali, a ser invadido por esta ideia.
Mas como acontece com todas as paixoes que assolapam a minha alma, tempo chegou em que a detestei, julguei tonta e incapaz de ser concretizada.
Numa recente deslocacao a Cottbus em visita a amigos, fui conduzido a uma pequena cidade na fronteira com a Polónia, de seu nome Guben. Ah e tal, tenho que ir trabalhar, dá uma volta por aí e encontramo-nos daqui a duas horas, disseram-me. Meia hora de deambulacao chegou para me aperceber de onde estava. Uma cidade, dois países, uma fronteira, tres línguas oficiais. De um lado do rio, Guben. Do outro, Gubin. De um lado Alemanha. Do outro Polónia. De um lado lojas com artigos de marca. Do outro um mercado de rua onde sou abordado a cada minuto por senhoras que me perguntam se quero comprar tabaco. Em ambos os lados uma  melancólica rivalidade de quem espera por dias que já nao voltam e que a Uniao Europeia também nao logrou esbater totalmente.
A abertura da fronteira nao conseguiu esconder as óbvias diferencas entre os dois lados e o regresso a uma única cidade é hoje uma miragem tao distante como a que em tempos me invadiu e também nunca se concretizou.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

España, variação do tema de Jorge Sousa Braga




España
Yo tengo treinta y dos años y a veces me haces sentir como si tuviera quinientos
Que culpa tuve yo de que Cortés se fuera a las Américas a matar índios y volviera con un hijo de Doña Marina en los brazos
Casi creo que es todo mentira
Que los Reyes Católicos son una invención de Walt Disney
Y que el monumento a los caídos es una construcción de Lego
España
No imaginas como me siento cachondo cuando escucho la Marcha Real
(que me perdonen los más sensibles obispos de la gran España)
Ayer estuve jugando al póker con Unamuno
Sigue por el Conxo
Le dieron unos electro-choques y está recuperando
Excepto el facto que ahora me intenta convencer de que a Ibéria le espera un futuro de rosas
España
Un día me cerré en la Giralda a ver si cogía la fiebre del imperio
Pero lo único que me pasó fue un estreñimiento
Un día me fui a buscar los huesos de Cervantes
Pero lo único que encontré fue betón
España
Voy a contarte un cosa que nunca conté a nadie
¿Sabes?
Estoy locamente enamorado de tí

y me pregunto a mí mismo
como me pude enamorarme de un viejo decrépito y tonto como tú
pero que tiene el corazón dulce, aún más dulce que los turrones de Alicante
y tiene el cuerpo lleno de puntos negros para poder apretar como me dé la gana
España, ¿me estás escuchando?
Yo nací en 1982.
Felipe González estaba en el poder. No tengo resentimientos.
Aznar estuvo en el poder. No tengo resentimientos.
Nos fuimos a matar gente en Irak. No tengo resentimientos.
Un día bebí vinagre. No tengo resentimientos.
Vi a mis amigos marcharse fuera de España porque no conseguían curro,
Vi a chinos a vender cerveza en las calles de Barcelona,
Vi a España a ganar la copa del mundo y bajar en todos los niveles de calidad de vida,
Y así mismo,
No tengo resentimientos.
España,
¿Sabes de qué color son mis ojos?
Marrones, como los de mi madre
España
Me encantaría besarte muy apasionadamente
En la boca

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Insensatez



- Insensatez.
- Como assim?
- Insensatez,  foi o que ele disse.
- Assim sem mais nem menos que nem o...
- Pois, que nem o padre João Carlos.  Assim de forte, filha.
- Valha-nos Deus que não sei onde é que este mundo vai parar.
Na vila de Meandros não se precisou de muito tempo para se espalhar a notícia de que o pequeno João Inácio,  filho de Maria de Freitas e de Joaquim Inácio, donos da mercearia local onde os homens se faziam esquecer das durezas do quotidiano em fins de tarde regados com vinho a martelo, padecia de enfermidade tal que ninguém poderia imaginar qual a melhor solução para curar a pobre criança.  Ao sofrimento desmedido de Maria de Freitas expresso de forma convicta no acender de velas no altar de Santa Bárbara e de um copo de bagaço a embalar o chá da manhã,  contrastou a decisão firme do Joaquim Inácio de enviar o pequeno João para o Colégio Militar para que se fizesse homem. Esta coisa da insensatez era um mal que tinha que ser arrancado pela raiz antes que se tornasse numa epidemia social, vociferou o Joaquim enquanto abria a terceira garrafa de uísque em dia de jogo do Benfica. Menos mal que os encarnados ganharam poupando Maria de Freitas aos habituais arrufos da derrota. O amor sempre assume formas que o coração desconhece.
Já o pobre João Inácio parecia não se inteirar do que zoava à sua volta. A vila parecia-lhe mais calma do que nunca, o que não deixava de ser mau sinal. Tal como no mar, demasiada calmia só poderia ser sinal de tempestade para vir. Por isso ocupava os dias desse fim de Setembro em passeios pelos campos dourados a contemplar a sensibilidade agressiva dos cardos secos ou a forma como as folhas das azinheiras se dobravam ao sol impiedoso. A escola era ainda uma realidade distante, difusa nas experiências de mais um verão onde a solidão o tinha voltado a abraçar como só os bons amigos o fazem.
E foi nesse fim de verão que Maria de Freitas o levou ao médico que uma vez a cada quinze dias ocupava a cadeira do Posto Médico para cumprir os exames de rotina,  não fosse ele estar a parir sarampo ou maleita semelhante. Preocupada com os silêncios cada vez maiores do seu único filho e herdeiro total não só da mercearia como de três hectares de oliveiras galegas e sete de vinhedos de boa e reconhecida fama, acabou por ganhar coragem para perguntar se o seu filho sofria dessa doença que o século XXI tinha trazido e que fazia os homens beijarem homens e adoptarem comportamentos iguais aos dos cães que nem sempre olham à diferença de sexo para satisfazerem os seus ímpetos.
- Oh minha senhora, isso é pura insensatez.
Remetida ao silêncio condoido que estas situações implicam, não conseguiu controlar que a sua cabeça se enchesse de imagens do padre João Carlos condenado por herege face à insensatez dos seus actos. Ter negado o privilégio de beijar a mais convicta das crentes, aquela que nunca olhou a meios para apoiar as iniciativas paroquiais, aquela que nunca lhe negou um garrafão de vinho para que também ele pudesse, à semelhança dos homens que frequentavam a mercearia, esquecer-se das durezas do quotidiano, tinha sido demasiado. Após diversas cartas anónimas a denunciarem o comportamento desviante de um homem de Deus que via na imagem de Cristo a perfeição sexual, o padre João Carlos tinha sido vítima de um doloroso e moroso processo de excomunhão.
Mas a vida tem coisas e voltas do diabo, pensou Maria de Freitas depois do diagnóstico do médico. 
Não foi, por isso, de espantar que nessa mesma semana o João Inácio tivesse sido alvejado pelas costas durante um dos seus rotineiros passeios de fim de verão pelos campos que rodeavam a vila de Meandros. À noite os homens beberam ainda mais para acompanhar a dor de um pai que tudo tinha feito pelo seu filho, enquanto Maria de Freitas sentada sozinha na sala contígua ao café embalava uma caneca de  chá de cidreira com dose dupla de bagaço e ouvia o choro furioso do seu marido, relembrando ternamente  o momento fugaz do beijo que conseguiu roubar ao padre João Carlos.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

vício de mãos

Se há coisa horrível, temível, capaz de criar pesadelos nas mais inocentes crianças destas terras germânicas e arredores é a questão da perda de tempo. A inutilidade é algo que é combatido desde a mais tenra idade sem qualquer tipo de pudor pelas teorias poéticas do Manoel de Barros. As companhias de seguros recusam-se terminantemente a garantir a segurança de todos os que são com frequência apanhados com olhos líricos perdidos num qualquer ponto de espaço. Se nos encontramos perdidos em pensamentos é recomendado que o façamos de forma séria como quem resolve uma complicada equação matemática que nos garanta, pelo menos, um nobel da economia.
Mas é claro que vos descrevo uma situação hipotética pois mesmo os autóctones se deixam levar por mais elevados pensamentos que não nos levam a lado nenhum, incorrendo em pecados capitais condenados pelos mais diversos sectores da sociedade. Contudo a imagem ibérica do senhor de chapéu na cabeça e mãos nos bolsos em dias de sol é coisa por aqui pouco vista, sendo substituída por pessoas que não sabem o que fazer com as mãos. Podendo ser chato ter mãos, é infinitamente mais chato não saber o que fazer com elas. Daí haver um número considerável de pessoas que enchem as mãos com cigarros e telemóveis impondo um ar de quem aproveita o sinal vermelho de uma passadeira para responderem de forma positiva aos anúncios de cada estação de metro ou consultarem as últimas novidades de amigos e conhecidos que, como eles, também estarão a aproveitar os tempos mortos da vida activa e real para matarem este vício de mãos que é infligido e aflige os locais desde a mais tenra idade.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Da hanseática experiencia laboral

Uma semana com o S. Um telefonema, nova experiencia numa outra escola, desta feita a acompanhar as actividades de tempos livres da gaiatagem. Enfrentar a burocracia alema a fim de obter um cadastro, receber um contrato e a informacao de que já nao precisavam mais de mim, definindo a minha experiencia laboral como "nett" ou seja, simpática. Nova entrevista de emprego, proposta de novos desafios numa outra escola, contrato mais aliciante.
Do meu anterior empregador ficou-me um gosto amargo da minha primeira experiencia com empresas alemas. Depois de nao me terem dado qualquer tipo de razao para ser dispensado, felicitaram-me pelo novo emprego e pediram que lhes escrevesse uma carta a pedir desculpa pelo facto de renunciar ao contrato recentemente celebrado invocando o novo trabalho enquanto motivo da minha desistencia. Se até aqui tudo me tinha parecido estranho, a partir deste momento comecou a assumir contornos de irregularidade. Disse que nao o faria. Que escreveria a descrever o seguimento de acontecimentos. Ao falar com um vizinho do tasco ligado ao ensino germanico nos últimos cinquenta anos, ele cedo se prontificou a escrever-lhes a questionar a ética profissional e pedagógica. Sentir-me acompanhado e querido nestas terras que ainda me sao, de certa forma, estranhas fez com que o sol saisse e iluminasse estas terras hanseáticas, iluminando igualmente a minha alma e fazendo crescer no meu peito o imenso desejo de fazer mais, muito mais e, porventura, melhor. 

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O email que porventura nunca irá ter resposta

(...)
Chegou ontem o programa das Palavras Andarilhas 2014. É uma pena que não possas estar :(
Vai dando notícias, Pedrito.
beijinhos
Lena
 
---------------
 
Querida Lena,
vou dando notícias, sim. 
Sabendo tu que às vezes sou um caos de mim mesmo, o tempo que te levo a responder é sempre variável. E nem poderia ser de outra maneira. Caso contrário seria aborrecido. Mas deixa-me que te diga que o nosso "recontacto" tem sido bom e até que as tuas palavras tem conseguido trazer um pouco mais de sol neste canto do norte onde estou.
É também com bastante pena que nao irei estar nas Andarilhas, mas como comecei a trabalhar numa escola é-me complicado viajar agora. Seria bom poder-te rever na cidade onde os contos se encontram e onde nos temos vindo a reencontrar amiúde.Quase acho que nos encontramos mais vezes em Beja do que em Lisboa ;)
Muito me alegra igualmente que tenha tudo resultado bem com a Carla. Ela é uma pessoa especial e creio que irá ser uma boa experiencia, para alémd o facto de que é sempre bom participar em primeiras edicoes de festivais. Uma pessoa torna-se automaticamente num género de ícone ou personagem mitológica. Ficarás na história, é o que é!
Mas já me contarás novas! Manda um beijinho meu à Carla e a todas as pessoas com quem te irás cruzar em Beja e que, de certa forma, me fazem falta nestes dias cinzentoes de Hamburgo.
Até já!

Pedro


(Pouco tempo depois de te ter enviado este mail soube pelo facebook que tinhas morrido, pelo que talvez nao espere resposta às minhas palavras. Ou talvez sim. Estou certo de que já me contarás novas porque isto há dias e dias e hoje sinto particularmente a tua falta. Um beijinho)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

De regresso à escola

Aquando das grandes decisoes sobre o futuro os meus pais (ambos professores) deixaram-me um vivo conselho que a minha irma ignorou, revelando-se assim a grande rebelde da família: Faz o que quiseres, mas nao te tornes professor!
Como bom filho disciplinado que sempre fui, assim o fiz.
Contudo, isso nunca me impediu de trabalhar de perto com escolas num género de toca e foge desta vida adulta que me atingiu sem que realmente o quisesse. Depois da Biblitoeca de Grandola e dos programas de leitura, seguiram-se os contos de forma mais autónoma, as formacoes para professores em Portugal e no Estrangeiro sempre numa relacao ao mesmo tempo estranha e familiar.
Assim sendo, nao terá sido de espantar que esta semana tenha regressado à escola.
Depois de um telefonema a intimidar-me a apresentar-me às 8 da manha (intimidacao é a única coisa que funciona comigo a tais matutinas horas) numa escola, lá fui conduzido e apresentado a uma escola primária. Depois de ter sido literalmente vendido à directora da escola enquanto elemento valioso para o acompanhamento escolar de uma criatura com problemas de indisciplina, vi-me perante perante o S. 11 anos, olhos azuis cheios de tédio e um cabelo espevitado, consegui desde logo arrancar um simpático: Tu tens que aprender mais alemao, ou que?
A escola que me foi atribuída é uma escola para criancas "especiais" que, por uma ou outra razao, nao conseguem figurar no sistema de educacao da livre e hanseática cidade de Hamburgo. Turmas de 14 alunos. Todas as portas se encontram trancadas, tendo apenas os adultos uma cópia da chave mestra, adquirida desde logo junto do senhor que se encarrega da manutencao dos edifícios. Moin, diz-me, enquanto mostra toda uma panóplia de possibilidades de porta-chaves com os mais diversos elementos alusivos ao St. Pauli (clube assaz conhecido pelos seus simpáticos tiffosi).
Por entre o caos de um início de ano lectivo lá comeco a minha funcao de tutoria (schulbegleitung em alemao) do pequeno S. Aos incidentes da sala de aula, onde a palavra "merda" é tolerada pelos professores como sendo algo normal, seguem-se os incidentes no exterior. Nesta primeira semana já tive oportunidade de separar dois adolescentes que partilhavam alegres agressoes e trocas de ameacas e procurar de forma mais ou menos intensiva o paradeiro de duas criaturas que simplesmente nao queriam ir à aula de música.
Às provocacoes constantes do pequeno S. dentro da sala de aula, seguem-se os convites para partilhar os intervalos com ele e ouvi-lo discorrer sobre cartas de Pokemon, futebol e pequenas aulas privadas de alemao. Nao é "dich", é "dir", repete incessantemente à medida que vou falhando dativo e acusativo de forma flagrante. A cada "danke" que lhe respondo, revela sempre uma certa estranheza a estas cortesias de tom latino que vou proferindo. Talvez a latinidade seja um caminho a seguir.
As estórias, de certeza. Hoje contei-lhe a primeira e nao consegui deixar de me surpreender com os olhos azuis depositados nas palavras que me iam tremulamente saindo. No final convidou-me para comer waffles caseiros e ajudá-lo a ordenar as cartas de Pokemon por ordem alfabética, assim prescindindo do intervalo ao ar livre.
Quando me despedi com um "até amanha" no início do segundo bloco de aulas, perguntou-me de forma provocadora se tinha mesmo que regressar no dia seguinte. Tut mir leid, respondi. De regresso recebi um"Nicht schlimm" (Nao é mau)  e um sorriso.
E de sorriso na cara deixei a escola preparando mentalmente para mais um dia.    

domingo, 24 de agosto de 2014

Vida Ficcional

No outro dia foi-me imposto um livro. Toma. Le.
Tremi.
Olhei para a capa e tremi ainda mais ao aperceber-me que nao se tratava de ficcao. Uma coisa foi o tremer incontrolável que senti quando o bibliotecário do Cervantes me encheu as maos com Onetti, Conto Espanhol do Pós-Guerra, Ana María Matute, Benedetti, Seleccao de contos equatorianos, Galeano, Luís Mateo Diez apenas para nomear alguns. Outra coisa é imporem-me um livro de nao-ficcao.
Fazendo um pequeno retrocesso temporal, acho que o último livro de nao-ficcao que li de forma livre (excluindo assim o livro de regras sobre higiene alimentar em alemao ou os diversos livros de linguística dos tempos universitários) terá sido Nietszche, numa tentativa de partilhar o entusiasmo contangiante com que o Goncalo (criatura de cariz mitológico de nacionalidade scalabitana que ainda hoje define a minha nocao de amizade) lia as suas obras. Isto há coisa de uma década atrás (bonita idade esta que tenho em que já comeco a medir o tempo em questao de décadas).
Sentindo a obrigacao de passar os meus olhos por textos (vd. http://narralhices.blogspot.de/2014/05/recomendo-talvez-nao.html) de um senhor ingles que nos tenta ensinar a viver numa cópia frágil da realidade quotidiana, nao consegui nunca esconder o tédio e até uma certa revolta quando alguma frase mais acertiva me entrava pupilas dentro. A afirmacao de realidades e a consequente tentativa de imposicao de uma forma de viver ou de uma realidade absoluta tem-me causado cada vez maior desconforto.
O drama do senhor Feliciano em El día de las puertas cerradas (http://www.amazon.com/El-Dia-Las-Puertas-Cerradas/dp/B002DID1NA) do Equatoriano Oswaldo Encalada Vasquez modela os meus padroes de vida muito mais do que qualquer conselho directamente dado. E isto tudo tendo em conta que estou a viver na democrática Alemanha onde o conceito de liberdade pessoal é algo confuso e, de certo modo, definido por uma estrutura de interesses económicos que coloca a Seguranca Social portuguesa na categoria de infanto-juvenil.
Respirando fundo, olho para o típico céu cinzentao de Hamburgo, ponho as maos à volta da chávena de chá e regresso à ficcao sem data definida para dela sair.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O Pacheco volta a atacar

Velar o sono
acompanhando a respiracao
no contorno branco dos teus seios.
Ficar, assim,
no frio de Hamburgo,
apenas hanseático
e eternamento livre.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Da schiquimificação de Hamburgo

Hamburgo, à semelhança de qualquer boa cidade europeia que se preze, é um foco de desenvolvimento económico, atraindo pessoas dos mais diferentes quadrantes que aqui procuram uma vida. Ele há estudantes, refugiados africanos, informáticos portugueses, economistas estónios, tradutores polacos, alemães de todo o lado, o Ola John e até eu.
Claro está que com toda esta pressao demográfica encontrar um apartamento é difícil, para pô-lo de forma metafórica. Mais difícil é quando Hamburgo é a cidade alemã (e segunda na Europa) com mais milionários, pois é sabido que este tipo de gente aprecia o bom tempo (principal característica desta cidade que me acolheu há ano e meio). Assim sendo pede-se em Hamburgo cerca de 100€/mês extra por uma fabulosa varanda francesa, ou tem-se um senhor de uma imobiliária dizer que 30€ por metro quadrado é preço social por se estar nas imediações de um bairro que se diz de luxo.
Claro está que já pensei que se fosse milionário, coisa que desde logo assumi como objectivo principal da minha vida ao ter ido estudar Línguas e Literaturas Modernas para a FCSH, não viveria, de todo, em Hamburgo. Lisboa, Barcelona ou até mesmo Lyon têm encantos citadinos indescritíveis incrivelmente mais sedutores.
Seja como for, tendo o tasco instalado em Barmbek Süd, bairro de origem operária onde uma senhora de um instituto oficial me disse que tascos culturais não se coadunam com este género de zona, é com surpresa que vejo um vivo processo de schiquimiquificação acontecer aqui à volta. Depois da destruição massiva de um conjunto de lojas de bairro a fim de se construir um condomínio de luxo a apenas uma rua de distância daqui, é a vez das minhas traseiras serem vitimadas por novo condomínio de luxo com ordem de expulsão de uma loja/armazém de vinhos austríacos até Novembro. Isto para não falar da transformação de um bunker em mais um condomínio, porque é super chique viver virtualmente sem janelas!
Devo esclarecer que em Barmbek dificilmente se tem vista para o Alster (lago de águas poluídas onde os alemães se juntam para fazer grelhados ao fim de semana) e que alimenta a vista das casas dos milionários que protestam infinitamente contra os ditos grelhados. Que em Barmbek não há restaurantes onde nos tratam como lixo humano (coisa relevante do mais alto nível social). Que em Barmbek ainda há estudantes e ruas com nomes de compositores. Que Barmbek está afinal bem perto de Uhlenhorst e que estar perto de um bairro chique é quase ou tão bom como estar num bairro chique. Que Uhlenhorst não tem nem metade do charme da Graça. Não tem miradouros e muito menos restaurantes onde nos podemos apaixonar. Não tem pessoas que nos saúdam quando passamos por elas. Tem carros e casas encerrados em si mesmos. E isso é chique. Pelo menos por aqui.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Artur, porque sim



Vais beber café com o pai de uma amiga? Ela é boa?
Confesso que temi perante o convite.  Será que me iria ser impingida uma seita religiosa? Uma oportunidade de negócio irrecusável do qual ainda hoje estaria a pagar as dívidas relacionadas com o investimento inicial, já para nao falar dos subsequentes problemas relacionados com a PJ? Uma ameaca física relacionada com uma falsa interpretacao de um gesto menos púdico com a filha dele também pairou no horizonte.
Do encontro num café perto da faculdade onde fingi estudar trouxe conceitos de Fair Trade, agricultura biológica e um livro sobre o qual me lancou muitas perguntas.  The hitchhiker's guide to the galaxy foi o eleito e usado como introducao a um outro mundo (s?) e tema de futuras conversas. Afinal o pai da amiga nao me queria vender nada. Queria apenas e simplesmente falar. Senti-me tentado a pedir-lhe desculpa por tamanhas bizarrias terem passado sequer pela minha cabeca. Nao pedi.
Mas nao por falta de oportunidade. Trocámos emails, referencias, reencontrámo-nos, conversámos sobre a possível existencia de mundos paralelos.  Sobre os malifícios de viver. Sobre música. Sobre livros que nunca tinha lido. Sobre a possibilidade da realidade ser irreal e vice-versa.  Foram dez anos inconstantes como só os anos o sabem ser. Mas foram dez anos onde cada encontro se fazia na redescoberta de uma cumplicidade construída.
O último encontro lembro-me bem, como soe acontecer nestas ocasioes.  O Artur, que entretanto já tinha deixado de ser o pai da amiga para ter direito a nome e identidade, apareceu no hostel, jantou, confratermizou e sem conseguir esconder as fraquezas incontroláveis da doenca que o invadiu, pediu-me desculpa.
Foram estas as últimas palavras que ouvi da boca dele. Com o aniversário que se seguiu cumpriu-se um círculo perfeito, como só acontece com aqueles para quem o irreal é, afinal, realidade.