quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Algo chateado

Perante uma plateia morta de tédio e desespero (como só os adolescentes o conseguem ser) e um grupo de professores orgulhosos o João de Melo foi ao Liceu. Não hoje. Não ontem. Nem mesmo anteontem. Se a memória não me falha terá sido há uns catorze anos.
Eu estava entre os adolescentes meio adormecidos que não tiveram hipótese senão a de irem para a sala de actos sem aviso prévio. Santarém estava imersa num daqueles dias de nevoeiro que costumam enrolar os scalabitas num género de apatia e nostalgia, sonhando com um futuro cheio de gloriosos passados.
Perfeito para ser lida uma apresentação do personagem que nos tinha concedido tão amável visita. Com um papel recém-impresso uma das orgulhosas professoras fez uma leitura à primeira vista de informações que quase pareciam saídas de uma enciclopédia estrangeira.  Posso jurar que a apresentação não durou mais que 2 minutos, mas que vi o estranho senhor de cabelo grisalho a revirar os olhos pelo menos 15 vezes.
No fim de uma conversa sobre guerra colonial, colégios de padres, Lisboa, os Açores e a outra senhora, o senhor Jorge de Melo resolveu perguntar aos inchados professores se por acaso já tinham lido algum dos seus livros. A fim de esconder o embaraço da resposta (ou da falta dela) a professora do curso técnico de comunicação social tocou solicitamente nas costas de um dos selecionados para fazer perguntas. Aí surge a fatal pergunta que, com certeza, provoca calafrios e vontade de ir à casa de banho a todos os escritores: Porque é que começou a escrever?
Novo revirar de olhos.
Já com as órbitas de volta ao local esperado foi-nos explicado que antes de começar a escrever, foi leitor. Compulsivo, como um vício que não se consegue abandonar nunca e que só tende a piorar. Quando já não tinha mais tempo para ler, começou a escrever.
Isto marcou-me de forma profunda, até porque na altura escrevia mais do que lia como, de resto, acontece com muito bom adolescente.
Este momento singular marcou-me de tal forma que se operou em mim uma revolução interna. Comecei a ler mais,  introduzindo em mim a angústia de achar sempre que o tempo nunca me irá chegar para ler tudo o que quero ou devo até poder recomeçar a escrever e sonhar que isso será bom para outros. Mas sobre isto já o Gabriel Zaid no seu Livros de Mais fala de forma muito mais profissional e com números e tudo. Como é sabido nunca fui particularmente brilhante com essas coisas dos números constituindo sempre um mistério insondável o facto de ter dinheiro para pagar as contas ao fim do mês.
Quis a vida que fosse trabalhar numa biblioteca depois de um par de reviravoltas.
Perfeito, pensei.
O meu vício começou a ser alimentado de forma indiscriminada sem qualquer tipo de pudor. O prazer de ir às compras é e sempre será para mim indescritível e ecoará dentro de mim como momentos de pura euforia.
O quotidiano, contudo, encarregou-se de me ir tirando o peso das ilusões. As razões são as do costume e é sempre redutor lançar lugares comuns temendo mesmo excluir pessoas de valor e inspiradoras. Mas ouso dizer que a maioria das pessoas que conheci neste mundo das bibliotecas pouco ou nada lê. Indignam-se com os 60% que não leram um único livro no ano passado esquecendo-se que talvez façam parte desse mesmo número. Mas pior que isso é a forma como enchem o muro do facebook com citações e imagens sobre a beleza e benefícios da leitura como se de uma seita se tratasse. Seita essa que tanto cita Pessoa com um pôr de sol de fundo, Osho com uma gaivota (e os inconfundíveis óculos de sol) ou Chico Buarque com uma criança a ler pendurada numa árvore numa ilustracao digna dos livros da Anita. Ah, o Einstein também costuma aparecer nestas lides.
Nos comentários ao mesmo relatório fala-se inevitável da crise e do preço dos livros, mas, tanto quanto sei, ainda há bibliotecas em Portugal com horários de abertura generosos. 
Por estas terras frias paga-se para se ser sócio das bibliotecas públicas. Os atrasos nas entregas dos livros são igualmente alvo de pequenos lembretes pecuniários. O cartão da Zentralbibliothek faz referência a "cliente" e não a "sócio". Contudo, às 11 da manhã, hora em que a dita cuja da qual sou sócio abre, há, invariavelmente, uma fila de pessoas à espera para entrar num cenário de quase sonho para muitos.
Como que por acaso cruzei-me aqui no café com a responsável pelas compras de livros para a biblioteca. Perguntou-me o que achava eu da parte relativa à literatura portuguesa. Picarrucha, respondi na secreta esperança de que surgisse um investimento à escala da minha fome. Sabes, respondeu ela com aquela desarmante sinceridade alemã, não é que não haja portugueses em Hamburgo (quase tantos como em Grândola, bem sei) mas os números de requisições não justificam um aumento no número de volumes disponíveis (que polida que é esta gente, heim?).
Poderia tecer comentários sobre as diferenças e possíveis motivos.
Não o farei porque, de momento, sinto o mesmo que senti há catorze anos atrás quando o João de Melo se dignou a visitar o Liceu num invejável exercício de revirar de olhos. Na altura pus a minha scalabitanidade de parte e hoje vou deixando o orgulho pátrio fixar-se na produção vinícola e nas horas de exposição solar com que as nossas cidades são agraciadas ano após ano.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Apaixonado

Conheci o Mario no dia em que morreu.
Acontece-me amiúde. Eles morrem e eu lá estou, pronto a conhece-los.
Na altura estava apaixonado pelo Moacyr (ainda estou) mas já andava nos primeiros namoriscos com o Galeano, comecando a acreditar que beber mate confere uma capacidade literária capaz de inscrever qualquer um no Olimpo literário e nos códices do Harold Bloom.
Passados quase quatro anos, estou apaixonado pelo Mario. Pelo Moacyr. Pelo Galeano. Pelo Valter. Pelo Saramago. Pelo Lodge. Pela Sophia. Por todos os que ainda me fazem sorrir (maneira simpática de abreviar uma lista que sempre ficaria incompleta). Sou um pouco permissivo nestas coisas, embora só costume ir com um de cada vez.
Hoje jantei com o Mario da mesma maneira como quem janta com um bom amigo. Sendo que este amigo nunca falta alegando constipacoes ou obstipacoes. Pode até mesmo estar morto que nunca falta. Às vezes pode ser difícil de encontrar, mas uma vez encontrado, nao falta.
E da mesma maneira que comigo jantam, sempre os consigo levar para cama sabendo que quando acordar ainda lá estarao ao meu lado.
Que bonito é ainda estar apaixonado!




 E acreditar.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Lisboa vista pelos espanhóis



“Es como el testigo silenciose del continente, al cual, desde su occidente extremo, contempla a medida que es iluminado por el sol que avanza. Mira de reojo para que no la deslumbre el astro, y a veces, aburrida, le da la espalda. Es un lugar acolchado y tenue, sesgado, que se aparece como en un estado de potencialidad infinita, de inacabables morosidad y recato.” – Javier Marías

Isto há coisas que me chateiam de sobremaneira. Pagar impostos cada vez maiores para um estado que espera ainda que envie remessas é uma delas. Ver o Roberto a rubricar uma exibição de luxo contra o Benfica é outra. Ter escritores espanhóis encantados por Lisboa e, de certa forma, a apoderarem-se dela, é outra ainda.
Os últimos três escritores espanhóis que me passaram pelas mãos no espaço de apenas semana e meia, vai de tecerem comentários sobre Lisboa sem qualquer tipo de pejo.
O primeiro, o senhor Vila-Matas, já é um velho conhecido deste género de abusos. A sua paixão por Pessoa parece servir de justificacao para uma libertinagem de amante desavergonhado. Neste último Aire de Dylan tudo parecia indicar que não o iria fazer. Barcelona, relações estranhas com a fama, o já costumeiro mundo literário, Estados Unidos, problemas geracionais e… Lisboa. Se na minha vida apenas tivesse como certa a obra de Vila-Matas da mesma forma que certos estados americanos tem a bíblia, quase conseguiria jurar que Lisboa seria uma cidade catalã ou um bairro de puro luxo intelectual de Barcelona.
Nos Contos Negros  do Montalbán, lá surge o investigador Carvalho em Lisboa. Ao invés do que geralmente acontece, não há mortos nem cenas sórdidas de sexo entre copos de uísque, mas sim um conto lírico e apaixonado. Uma excepção nas lides de um dos mais icónicos investigadores privados destes mundos das literaturas. Cá para mim o Montalbán estava mesmo a fazer-se a Lisboa à espera que esta retribuísse e que, uma vez mais, se tornasse catalã. Algo cansado deste expansionismo catalão, quase chego a propor que se torne a Catalunha lisboeta e que se acabe com este assédio de uma vez por todas.
Enfiando-me destemidamente por um castelanista de afamada mala leche dou com um prefácio onde se anuncia que Lisboa irá surgir. Irá Javier Marías dizer mal de Lisboa como é de sua tão comum tradição?
Em El siglo há todo um capítulo (o sexto) dedicado às desventuras de Casaldálida num exílio lisboeta repleto de cafés e conspirações de tertúlias entre a comunidade hispanohablante. Até aqui tudo bem. Mas dedicar cerca de trinta páginas a descrever de forma embevecida Lisboa num bater de couro descarado, é demais! Veja-se a frase com que inicia este desabafo! Isto é demasiado assédio para o meu pobre coração!  Estivesse Espanha numa mais vantajosa posição económica e creio que o melhor que tínhamos a fazer era vender Lisboa aos espanhóis para que estes finalmente possam ter a capital intelectual e sensorial que lhes parece andar a faltar.

O tempo das coisas



Esperar um ano pela Feira do Livro de Lisboa. Esperar três semanas para ver os coentros brotarem das sementes que lancei de forma desesperançada. Esperar oito horas para que o despertador me volte a  acordar. Esperar seis minutos para começar a ver as cebolas a dourarem num refogado. Esperar noventa minutos para se saber o resultado de um jogo de futebol. Esperar dezasseis minutos para se completar o aquecimento da máquina de café. Esperar um minuto e meio para ver a água atingir os 70º que abre as portas do mate.
Embora esta espera contínua de que são feitos os nossos dias nos dêem a tranquilidade de saber que a ordem universal ainda se mantém mais ou menos a mesma, há um outro género de esperas que não consigo controlar de forma racional.
Há o tempo de espera para começar a ler um livro depois de o ter comprado ou tomado por empréstimo na biblioteca. Há o tempo para se estrear umas botas recém compradas com a promessa de que a água será impotente de chegar aos meus pés face às camadas defensivas de gore tex. E houve o tempo finalmente cumprido de ano e meio para beber um chá preto comprado no Irão. Pese embora a fotografia do bondoso senhor que mo vendeu me controle as manhãs e já tenha até sido alvo das minhas mais sonolentas fantasias sob forma de um conto que ainda não ousei contar, verdade seja dita que ainda não o tinha  provado. É até mesmo de estranhar que me tenha decidido a trazê-lo para Hamburgo. Do chá iraniano a melhor recordação que guardo foi a de ter bebido algo parecido com vodka numa das salas da biblioteca que albergou o festival quando perguntei à equipa do catering se seria possível beber um pouco de chá na esperança vã de que me passasse uma dor de cabeça. Como gente de bom coração que o são a maioria dos iranianos, não hesitaram em oferecer-me álcool. Para a dor de cabeça realmente não há nada melhor.
A manhã por aqui estava típica de Hamburgo. Céu cinzento, uma chuva miudinha capaz de modelar a mais simpática das personalidades e um frio que torna as luvas e os gorros não nos nossos melhores amigos mas num elemento indispensável da nossa existência.  Para não variar entrego o meu despertar aos poderes infinitos do chá preto esperando que este me diga que é real que estou acordado e, mais do que tudo, vivo. Preciso de um forte, esboço eu em forma de pensamento que nunca se chega a concretizar em palavras audíveis. Inconsciente pego no pacote de chá iraniano e deixo-o o tempo suficiente para adquirir o tom dourado e aquele toque levemente amargo típicos dos chás nos países muçulmanos. E no primeiro sorver veio a memória, o prazer, o reviver, a viagem, as leituras, os sorrisos, o que deixei, o que quis deixar e o que me invadiu sem retorno. Picada de saudade, picada de fantasia, tudo junto numa meia hora de olhos vazios. De nada serviu o senhor Vila-Matas nem os poemas do Manoel de Barros. Muito menos o Die Welt.
Na rua a chuva miudinha e o frio trouxeram-me de volta. Conto agora o tempo de espera que me resta para novo regresso amanhã de manhã como se de uma ordem natural se tratasse.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Medidas visionárias dos mestres

Uma das mais comuns ideias de toda esta longa e penosa história da crise e dos cortes é de que Portugal gasta muito dinheiro do herário público. E talvez seja verdade. Em comparacao com esta Alemanha onde vivo há tres dados quase chocantes onde se prova que os portugueses se comportam como novos ricos esbanjadores.

1 - Iluminacao pública
Nao se percebe porque é que Portugal nao adopta o modelo alemao de apenas iluminar as estradas de cinquenta em cinquenta metros deixando os peoes e os ciclistas à merce de buracos e de jovens com pouco cabelo que gostam de aplicar pontapés com alguma forca a estrangeiros e nao só. A pouca iluminacao que existe nas ruas deriva simpaticamente dos comerciantes que deixam as luzes dos estabelecimentos ligadas ou a das entradas dos prédios. No caso do meu que já nao tem luz há coisa de seis meses, compreende-se que aparentemente também nao faz falta pois tenho conseguido entrar em casa com maior ou menor facilidade.

2 - Polícia
Caso um indivíduo seja vítima dos tais pontapés supracitados ou de um mero roubo à noite pode-se dirigir à esquadra de polícia mais próxima e irá muito provavelmente encontrá-la fechada. Tendo Hamburgo quase dois milhoes de habitantes, compreende-se perfeitamente que à noite só um par de esquadras estejam abertas. Afinal, a polícia é um servico público e nao serve para andar por aí a ganhar horas extraordinárias à parva. No meu caso, a esquadra nocturna mais próxima  encontra-se a seis quilómetros. Claro está que já me imaginei a ser roubado à entrada de casa, ficar sem carteira, arrastar-me para o metro para ir até Hauptbanhof à esquadra e ser apanhado pelos picas no metro e acabar a noite na prisao por nao ter comigo qualquer título de transporte. Pelo menos teria companhia até à esquadra, que é coisa que nos dias de hoje vale ouro.

3 - Limpeza
A limpeza das ruas é da responsabilidade de cada prédio e de tempos a tempos lá se ve alguém a varrer os tres metros quadrados que correspondem à entrada do prédio. As zonas peatonais onde nao há prédios sao limpas ocasionalmente quando a rainha de Inglaterra faz anos ou o St. Pauli consegue derrotar o Bayern (casos de 2002, 1991 e 1949). Estando nós no Outono as folhas vao-se pois acumulando de forma selvagem escondendo o lixo anteriormente colecionado com bastante carinho. Ah, esqueci-me apenas de mencionar que nao é de todo incomum ver as pessoas as varrerem o lixo directamente para a estrada pois apanhá-lo pode provocar um conjunto de complicacoes físicas nada prazenteiras e isto os tempos nao estao para brincadeiras.


Estou confiante que caso Portugal aplique estas medidas, se pouparia muito e bom dinheirinho, tao precioso nos dias que correm. Estou até a pensar em propor aos nossos dirigentes a adopcao imediata destas medidas e verao como voltaremos a ser grandes e a dar cartas no negócio das especiarias.